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Imortal - Conto

 

Abelardo era um invejoso incorrigível, vivia a desejar tudo o que era de outras pessoas. Se um amigo comprava um carro usado, ele logo zombava  da conquista do amigo dizendo coisas do tipo: “Eu é que não vou comprar uma lata velha, logo, logo estarei com um carro zero quilômetro, vocês vão ver”. Abelardo fazia pouco caso  das conquistas dos outros, mas por dentro estava sempre a desejar as mesmas coisas que dizia  desprezar. 

Abelardo não era muito inteligente, não ia muito bem nos estudos e por isso certa vez ouviu de um dos professores que ele jamais teria sucesso na vida, que deveria ir se acostumando a ser um subalterno mal remunerado. Seus pais tentando confortar o filho disseram que aquilo era uma grande bobagem do professor, e o convenceram que como dizia uma antiga música de sucesso, bastava ser sincero e desejar profundo que ele seria capaz de sacudir o mundo. A partir desse dia Abelardo passou a desejar profundo muitas coisas, já ser sincero era outro departamento.

Abelardo levava uma vida solitária, tinha poucos amigos e nenhuma namorada, pudera, após muitos fracassos deixou o otimismo de lado e vivia a reclamar de tudo. Sou um azarado; ninguém gosta de mim; nada que faço dá certo e tantas outras frases pessimistas passaram a fazer parte do seu vocabulário usual 

Abelardo já estava com vinte e cinco anos quando seus pais decidiram ir viver em um sítio. Ele bem que tentou se adaptar aquele novo estilo de vida, mas varrer cocheiras e carregar sacos de bosta de cavalo nas costas não era o que queria fazer pelo resto dos seus dias, e assim ele voltou para a cidade grande e foi viver em uma humilde pensão. 

A vida de Abelardo não era fácil, não tinha profissão e nem aptidão para coisa alguma. Tentou ser ajudante de pedreiro, mas desistiu no primeiro dia de trabalho. Prestou concurso para auxiliar de serviços gerais em órgãos públicos, mas não conseguiu se classificar. 

Por algum tempo Abelardo sobreviveu com o pouco dinheiro que sua mãe lhe enviava, até que um amigo do seu pai deu a ele um emprego de ajudante geral na sua empresa. Lá, ele fazia pequenas entregas, ajudava na expedição de mercadorias, buscava lanche para as funcionárias do escritório e outros pequenos serviços. Abelardo ganhava pouco, mas era o suficiente para ele sobreviver.

Abelardo não via como mudar seu destino, até o dia que ouviu a conversa de duas funcionárias da empresa:

—Você foi assistir a palestra do professor grego?

—O professor Alexandre? Assisti, e para mim foi pura perda de tempo, ele misturou mitologia grega com um monte de lendas sobre como se tornar imortal e milionário. Ele vai dar a mesma palestra hoje, se quiser perder seu tempo vá assistir.

Ouvindo aquilo Abelardo pensou “tornar-se imortal e principalmente milionário seria a realização da sua vida” , então perguntou para a garota onde e qual era o horário da palestra e ao final do seu expediente de trabalho  para lá se dirigiu.

Durante a palestra o professor discorreu sobre várias lendas que tratam de imortalidade, falou sobre comer a carne de um Ningyo, um peixe-humano do folclore japonês, falou sobre Sísifo da mitologia grega que tentou enganar Zeus prendendo Tânato, a personificação da morte, falou sobre as maçãs de ouro da mitologia nórdica e tantas outra lendas que falavam de imortalidade.

Abelardo ficou fascinado com as lendas sobre imortalidade, se ele fosse imortal algum dia ficaria milionário.

Saindo do auditório foi surpreendido com o próprio professor lhe perguntando:

—Gostou da palestra amigo? De toda a plateia você parecia ser o mais interessado.

—A palestra foi ótima. O senhor deve ter mais ou menos trinta e cinco anos, onde consegue tantas informações?

—Estudo, muito estudo.

— Eu bem que eu  gostaria de entender melhor esses conceitos.

—Isso não é problema, se quiser dar um pulo na minha casa amanhã podemos conversar bastante a respeito.

—Que bom professor, amanhã é sábado e eu não trabalho. Por favor me dê seu endereço e o horário que estarei lá sem falta.

—Eu moro em uma chácara nos arredores da cidade e você não vai conseguir encontrar o local, me dê seu endereço que mando meu motorista te pegar às nove horas da manhã.

Naquela manhã de sábado Abelardo estava eufórico, pela primeira vez na vida alguém importante estava interessado nele.

O professor o recebeu e o levou até um jardim onde havia uma estátua de Zeus com cerca de dois metros de altura. Sentaram-se nas cadeiras de uma mesa de jardim em frente à estátua.

Fazendo um sinal a um funcionário com pinta de mordomo, o professor pediu que ele trouxesse uma garrafa de vinho e taças, porque aquele dia deveria ser celebrado.

Abelardo não entendeu o motivo da celebração, mas brindou mesmo assim.

Durante um bom tempo o professor discorreu sobre várias lendas. Sempre que o copo de Abelardo estava vazio o mordomo voltava a enchê-lo .

—Durante a palestra o senhor falou sobre pessoas que tentaram enganar os deuses, pode me dar um exemplo?

—Claro que posso, vou te contar duas lendas de Sísifo que tentou enganar os Deuses do Olimpo. A primeira lenda tem registros muito antigos, a segunda pouca gente conhece, dizem ainda ser uma invenção moderna. Bem, vamos as lendas:

—Diz a lenda original  que Sísifo dedurou Zeus ao Deus dos rios Asopo, contando a ele que Zeus tinha sequestrado a sua filha Egina. Zeus mandou o deus da morte, Tanatos, perseguir Sísifo, Sísifo  enganou Thanatos, e conseguiu prendê-lo. Quando o Deus Ares libertou Thanatos, Sísifo foi enviado ao reino dos mortos.  Lá chegando e vendo que não tinha como escapar da morte, enganou Hades o soberano do reino das sombras e o convenceu a ser mandado de volta ao mundo dos vivos para punir sua mulher por ter negligenciado  com suas exéquias fúnebres. Chegando ao mundo dos vivos, Sísifo decidiu não mais voltar ao mundos dos mortos. Quando  Hermes, o deus mensageiro e condutor das almas para o Além descobriu a esperteza de Sísifo decidiu dar a ele uma punição pior que a morte, então ele foi condenado por toda a eternidade a empurrar uma pedra até ao cimo de um monte, e quando lá chegava  a pedra invariavelmente caia da montanha obrigando Sísifo a empurra-la de volta. 

Conta ainda outra lenda que cansado do seu castigo, Sísifo um dia deixou de empurrar a tal pedra morro acima e mais uma vez foi enviado a Hades. De volta ao reino das sombras Sísifo pediu para se avistar com Zeus, e quando conseguiu falar com ele pediu perdão pela sua traição e rogou a Zeus que mudasse sua penitência pois ele não aguentava mais empurrar a pedra morro acima e não queria ficar por toda a eternidade no reino das sombras. Usando de grande perspicácia, Zeus disse  que poderia atender o pedido dele, mas haveriam algumas regras. De imediato Sísifo disse que aceitaria qualquer coisa que viesse de Zeus, então Zeus decretou:

  • Já que você não quer morrer, te farei imortal.
  • Te darei três pessoas para te servir durante toda sua vida .
  • Te darei tanto dinheiro quanto possa gastar.

Sísifo respondeu: —Isso é muito bom meu senhor, serei eternamente grato.

—Ainda não terminei, — disse Zeus. A imortalidade terá um preço:

  • Ao longo da tua vida você se apaixonará loucamente por várias mulheres, mas será desprezado ou traído por todas elas .
  • A cada trinta anos nosso pacto terá que ser renovado com tua alma assumindo um novo corpo.
  • Ao assumir um novo corpo fecundará uma mulher que morrerá ao dar a luz a um menino.
  • Quando seu filho completar a idade de trinta anos, você o levará até diante da minha estátua onde assumirá aquele corpo  e a alma dele será enviada para o Tártaro. 
  • Se cumprir essas regras você poderá viver por toda a eternidade.
  • Se não assumir o corpo de um filho até que ele tenha a idade de trinta e cinco anos, você morrerá e tua alma será enviada ao Tártaro, só que dessa vez não poderá se comunicar com mais ninguém para evitar tentar fugir novamente.

Depois de pouco mais de um século, Sísifo percebeu que a imortalidade muito mais que uma bênção era uma maldição. Ele não aguentava mais aquela vida solitária, não aguentava mais o sofrimento por ser desprezado por todas as mulheres que amou. Sofria ao criar e amar um filho durante trinta anos para depois enviar sua alma ao Tártaro para ele ele próprio continuasse imortal e assim Sísifo foi ter com Zeus.

—Não existe uma forma de eu fugir desse destino tão cruel meu senhor?

—A única forma de você se livrar será transferindo seu legado a alguém que o aceite de bom grado. A pessoa deve conhecer toda a história, suas bênçãos e maldições.   Se conseguir quem queira e aceite, tua alma será enviada aos Campos Elísios e ela assumirá teu corpo e teu legado.

—Só para te esclarecer Abelardo, o Tártaro é equivalente ao Inferno dos cristãos. e os Campos Elísios equivale ao paraíso dos cristãos.

Terminada a narrativa Abelardo perguntou

— O senhor sabe como essa transferência de almas era feita?

—Não sei ao certo, provavelmente seria algum tipo de ritual ou declaração diante da estátua de Zeus, mas parece que a outra pessoa deveria desejar e aceitar tudo o que era do outro.

—Não entendi direito o conceito.

— Não é o caso, mas só para exemplificar quero te perguntar uma coisa, caso eu, de livre e espontânea vontade quisesse transferir minha fortuna e tudo mais que me pertence para você, você aceitaria?

—Claro que aceitaria professor, o senhor deve levar uma vida de rei.

—Então nesse caso você estaria apto a herdar minha fortuna e meu legado.

—Acho difícil acreditar que isso funcione, mas gostaria de ver um ritual desses. 

—Que tal fazermos uma encenação  diante da estátua de Zeus só para sentir como seria essa transferência?

—Legal, vamos fazer esse teatrinho.

Posicionados em pé diante da estátua de Zeus Alexandre perguntou:

—Abelardo, você está ciente da história de Sísifo, do seu legado e maldição?

—Sim, estou ciente — declarou Abelardo.

—Mesmo sabendo que eu sou um sucessor de Sísifo, que herdei dele sua fortuna, bênçãos e maldições  você deseja e quer que eu transfira para você tudo aquilo que me pertence?

—Sim, desejo e quero.

—Agora repita com firmeza, pela minha livre e espontânea vontade é isso que eu desejo, e que assim seja.

—Pela minha livre e espontânea vontade é isso que eu desejo, e que assim seja.

Naquele momento Abelardo viu a estátua de Zeus se iluminar, ouviu uma sonora gargalhada e a seguir percebeu que sua alma tinha assumido o corpo do professor Alexandre. Olhando para o chão ele ainda pode ver seu próprio corpo caído se transformando em pó.