Sonho. Sonho?

 Ao acordar no meio da tarde ela estava confusa, muito confusa. Por que estava dormindo em pleno dia? Ao tentar se lembrar ficou ainda mais confusa, não sabia onde estava, nem como foi parar naquele lugar. A garota nem tinha conseguido se situar direito quando uma mulher entrou no quarto dizendo:

—Que bom que esteja acordada, como está se sentindo?

Quem era aquela mulher? pensou a garota. Pelo uniforme branco e corte impecável deveria ser uma profissional da saúde, mas afinal quem era ela?

—Além de estar muito confusa, me sinto bem. Onde estou e como vim parar aqui? 

—Qual é o teu nome, garota? —Perguntou a mulher.

—Meu nome? … —Não sei. Como é possível isso, não saber o próprio nome.

—E tua idade, você sabe?

— Eu…, bem …, não tenho a menor idéia

Entregando um espelho para a garota a mulher perguntou:

—Consegue se reconhecer?

Assim que se olhou no espelho ela respondeu.

—Não me reconheço, nunca vi essa pessoa no espelho. O que é isso, algum truque?

—Isso não é um truque, a imagem no espelho é você mesma, o problema é que você está com amnésia e parece que não consegue se lembrar de nada. Quero que me acompanhe para alguns testes. A propósito meu nome é Sara.

Sara acompanhou a garota até uma sala onde havia uma escrivaninha e duas cadeiras, a garota sentou em uma e Sara na outra.

—Me fale um nome que você gostaria de ter— disse Sara.

—Acho que Lúcia, não sei porque penso que esse pode ser o meu nome.

—Tudo bem, então até que se lembre do teu nome verdadeiro vou te chamar de Lúcia. —O que você lembra de você, Lúcia?

—Nada, absolutamente nada. Não sei quem sou, onde moro, não sei minha idade, se tenho familiares ou namorado. O interessante é que sei tudo sobre o mundo, mas não lembro de nunca antes ter participado de atividade alguma.

Entregando a Lúcia algumas folhas de papel com questões para exames de conclusão do segundo grau, pediu a ela que as respondesse enquanto ia até a outra sala conversar com sua supervisora. Quando retornou  e corrigiu os questionários, Sara ficou impressionada, Lúcia não havia errado uma questão sequer.

—Se você respondesse assim para uma exame final do segundo grau, passaria com nota dez, agora vamos a uns testes de conhecimento geral. Quem é o atual presidente do Brasil?

—Jair Bolsonaro

—O anterior?

—Michel Temer que assumiu depois da cassação da presidente Dilma Rousseff.

—Realmente não entendo o que está acontecendo com você. Você lembra de tudo só não lembra nada a respeito da tua vida. Qual seu sentimento agora?

—Neste momento meu sentimento é de urgência, sinto que tenho que ir embora daqui para cuidar de alguém, só que não sei quem é. Talvez se eu fosse para as ruas conseguisse me lembrar de algo.

—Você foi trazida para cá de um bairro distante, se sair às ruas não vai conseguir chegar a lugar algum. Agora vou te levar até a sala de recreação para conversar um pouco com outras pessoas.

Na sala de recreação havia algumas pessoas, mas ninguém conversava. Todas pareciam muito infelizes. Depois de quase meia hora uma senhora que aparentava ter idade superior a sessenta anos  se aproximou dizendo:

—Você é nova por aqui, também não consegue se lembrar quem é?

—Como sabe?

—Porque nesta clínica só tem pessoas que eles dizem que perdeu a memória.

—Clínica? Não vi equipamentos médicos e nada que lembre uma clínica. Aqui mais parece um hotel.

—Chega mais perto que vou te contar um segredo.

—Pode dizer.

—Ainda não descobri o motivo, mas estão mentindo para nós. Nós não temos amnésia e sim nos fizeram uma lavagem cerebral. Se eu fosse jovem que nem você fugiria daqui na primeira oportunidade.

—Por que diz isso?

—Havia uma garota como nós, levaram ela para uma sala dizendo que fariam ela recuperar a memória, quando saiu de lá parecia louca gritando que eles estavam mentindo, que ela não tinha morrido coisa alguma, depois levaram a garota para outra sala e ela nunca mais foi vista. Todos os dias chegam garotas novas e a história é sempre a mesma, dizem que elas estão com amnésia e em dois ou três dias a garota desaparece  e ninguém fala mais nela.

 Nem bem a senhora terminou seu comentário e uma funcionária da clínica se aproximou pedindo que ela a acompanhasse. Disfarçadamente Lúcia seguiu-as e viu quando entraram em uma porta no final do corredor. Talvez por mera curiosidade ou pelas coisas que aquela senhora havia dito, Lúcia ficou aguardando no corredor, até que cerca de dez minutos depois a mesma funcionária saiu sozinha da sala e perguntou a ela:

—O que faz aqui garota?

—Eu estava procurando um toalete e fiquei curiosa com aquela porta.

—Venha — disse a funcionária abrindo a porta.

Para surpresa de Lúcia na sala havia apenas duas poltronas e um televisor enorme, porém a senhora que ela tinha visto entrar não estava lá. Como era possível se na sala não tinha outra porta, janelas e nenhum outro móvel onde alguém pudesse ser escondido.

—Esta sala chamamos de sala das recordações, as pessoas que têm dificuldade de recordar são trazidas para cá e assistem alguns vídeos para ajudar a ativar a memória.

Lúcia pensou em perguntar para onde tinha ido aquela senhora, mas ficou com medo, muito medo e decidiu fugir daquele local, e sem titubear começou a caminhar pelos corredores em busca de uma saída. Após algumas tentativas, ela saiu por uma porta diretamente em um jardim defronte ao prédio e de lá chegou na rua. Uma vez na calçada Lúcia literalmente correu rua acima. Assim que virou a primeira esquina, Lúcia viu um ônibus parado no ponto, e correndo ainda mais entrou nele dizendo ao motorista que não tinha dinheiro para pagar a passagem, mas tinha que sair daquele local rapidamente. O motorista fechou a porta e pediu a ela que sentasse em qualquer poltrona. O ônibus estava praticamente vazio, a única pessoa embarcada era Sara que sorriu para ela dizendo:

 —Hora de voltar para a clínica Lúcia, e dessa vez terá um incentivo para recuperar a memória.

Chegando na clínica Sara levou Lúcia À mesma sala onde ela viu aquela senhora entrar e disse:

—Você sabe o motivo de ter escolhido esse nome? Você o escolheu porque Lúcia é teu nome verdadeiro. Sempre soubemos isso.

—Se sabiam por que não me falaram nada?

—Não falamos porque é muito importante que você recupere a memória para poder seguir em frente.

—Seguir em frente para onde?

—Sente-se, você vai ouvir uma música inspiradora enquanto assiste no televisor  a exibição de imagens que têm alguma relação com a tua vida, isso pode te ajudar a recuperar a memória.

De repente o ambiente foi tomado por uma música que Lúcia não conhecia, o som era inspirador e causava nela uma sensação de paz e felicidade. Alguns minutos após o início da música, o televisor começou a exibir um vídeo  onde ela se via à frente de um grupo de idosas ensinando-as a fazer exercícios de alongamento. Sim, pensou Lúcia, esse era seu compromisso todas as manhãs de sábado, ensinar exercícios àquelas idosas do asilo para ajudá-las na melhoria da qualidade de vida. 

Tão logo Lúcia tomou consciência dessa atividade, outro vídeo foi exibido, e nele ela estava em uma sala de aulas tirando dúvidas e corrigindo exercícios de adolescentes de uma comunidade muito pobre. Lúcia lembrou que participava de um projeto social que fornecia material didático para adolescentes da comunidade estudarem em casa visando conseguirem melhores empregos. Semanalmente havia o plantão tira dúvidas onde ela corrigia exercícios e tirava dúvidas desses adolescentes.

No vídeo seguinte ela se viu vestida de palhaça no meio de uma trupe que visitava orfanatos para alegrar o dia das crianças. Era gratificante ouvir as gargalhadas daquela criançada tão maltratada pela vida.

Finalmente foi exibido um vídeo onde ela se viu em um local que reconheceu imediatamente e sua alma foi tomada por emoções conflitantes. Lúcia se viu na sala de sua casa sentada em frente a sua mãe tentando fazê-la compreender que ela precisava sair.

—Mãe. Daqui a pouco a Maria vai chegar para ficar com você, e eu preciso sair para ir na entrevista para conseguir aquele emprego. A senhora entendeu?

Com idade de quase cinquenta anos e com os sintomas da  Doença de Huntington se agravando a cada dia, a mãe de Lúcia já não mais podia ser deixada sozinha. Era triste ver aquela pessoa que um dia foi tão dinâmica, que educou tão bem sua filha e que ajudou tanta gente quase não se lembrar mais nem de quem era. Lúcia pensou: “Será que é isso que está acontecendo comigo? Será que a exemplo da minha mãe também estou perdendo a memória?

Lúcia sabia que conseguir aquele emprego era fundamental para conseguir manter sua mãe sem a necessidade de interná-la em um asilo qualquer. Ela estava confiante, nos testes de conhecimento sobre a profissão não errou sequer uma questão. Sua avaliação médica e psicológica foi positiva e as referências do seu emprego anterior onde foi demitida porque a empresa encerrou suas atividades no Brasil eram invejáveis. Não tinha como não conseguir aquela vaga.

Na cena seguinte Lúcia se viu saindo transtornada dos escritórios da empresa, a vaga de emprego que ela estava certa que seria sua foi dada a outra garota menos competente, mas que tinha peitões, bunda grande e era “amiguinha” do recrutador. Aquilo era injusto, o recrutador a tinha prejudicado e lesado a empresa. O que ela faria agora?

Tentando enviar uma mensagem pelo telefone celular para Maria que cuidava de sua mãe, Lúcia se aproximou da faixa de segurança e assim que o sinal para pedestres mudou para a cor verde iniciou a travessia da avenida. Distraída que estava  não percebeu o automóvel que vinha em alta velocidade, só ouviu o som dos pneus cantando no asfalto após a freada brusca. Lúcia não teve tempo de sentir dor, o veículo a atingiu com violência lançando-a contra um poste poucos metros à frente. Na cena seguinte Lúcia se viu despertando naquele quarto.

Ainda confusa Lúcia perguntou:

—Afinal, o que houve, o que aconteceu comigo?

—Fique calma Lúcia, mas você foi atropelada por um veículo em alta velocidade. Teu corpo não resistiu aos ferimentos e teve morte instantânea.

Em um misto de consternação e desespero Lúcia perguntou:

—Você está me dizendo que eu morri?

—Você não morreu Lúcia, teu corpo físico é que morreu, mas tua alma é imortal e agora ela está aqui sendo preparada para seguir em frente.

No desespero Lúcia disse:

—Eu não posso morrer. Você mesma viu quantas pessoas dependem de alguma forma de mim, O que será da minha mãe, vai ser jogada em um asilo para deficientes?

—Nem tua mãe nem as demais pessoas são mais responsabilidade tua. Agora vou te levar a outro lugar para te mostrar onde vai ficar até ser enviada a outro plano.

—Você diz reencarnar?

—Quase isso. O estágio de evolução da tua alma permite que você tenha uma nova vida em um plano superior ao que você estava vivendo, mas isso é coisa que aprenderá aos poucos.

No mesmo instante Lúcia se viu em um jardim de uma beleza jamais vista, por todos os lados se viam pessoas transpirando paz e felicidade, o ar era de uma pureza incrível e o canto dos pássaros era a melodia mais bonita que ela ouvira. Tudo ali era perfeito.

—Este é o lugar onde você passará o tempo de adaptação antes de seguir adiante. Aos poucos você se desapegará do plano de onde veio, e quando estiver preparada poderá seguir adiante. Você terá novamente um corpo físico que muito mais perfeito do que o que acabou de deixar. Nesse novo plano poderá evoluir ainda mais.

—Tudo aqui é muito bonito, mas me sinto infeliz. Como minha mãe, que é uma pessoa tão boa, viverá?   Será jogada em um asilo para deficientes mentais e será tratada como um objeto sem valor ou como um vegetal que às vezes morre por descuido ou falta de rega? Essa é a justiça divina que  aprendi e acredito? Era meu destino morrer tão cedo e privar tanta gente, principalmente minha mãe das coisas que eu fazia por elas?.

—Essa coisa de destino é invenção humana. Aquele motorista  que te atropelou estava embriagado, dirigia em alta velocidade e passou um sinal fechado. Se ele não tivesse te atropelado teria batido com o carro no mesmo poste onde você foi arremessada e morrido. Talvez tivesse sido mais justo, mas não estou aqui para julgar.

—Minha mãe já foi avisada da minha morte? Ela compreendeu o que se passou? Qual foi a reação dela?

—Lúcia. Entenda uma coisa, o tempo aqui corre de forma diferente do plano de onde você veio. Naquele plano se passaram poucos minutos desde o acidente, teu corpo ainda está na rua e nem a ambulância de resgate com os paramédicos chegou ao local.

—Eu fui educada e sempre aprendi que Deus poderia atender pedidos justos, mesmo que fossem considerados impossíveis pela humanidade, se eu pedir existe alguma chance de eu não morrer agora?

—Faça o seguinte: está vendo aquela capela ao lado do gramado? Lá não tem nem um símbolo religioso porque aqui não existem religiões. Vá até lá, medite o verdadeiro motivo porque deseja voltar e peça a Deus para que você retorne à vida. Ele vai te ouvir e julgar, se o pedido for justo pode ser que ele te atenda, mas dificilmente isso acontece.

Lúcia entrou na capela e mesmo sem ter um corpo físico a dor que sentia era tão intensa que teve a nítida impressão que lágrimas corriam dos seus olhos e alí se ajoelhou  e pediu em oração: “Senhor. Sei que aqui onde estou é um lugar maravilhoso, muito melhor do que o lugar de onde vim e por isso sou grata, mas Senhor, não me sinto feliz aqui sabendo que são tão poucos os que como eu se dispõe a ajudar as pessoas. Senhor, me sinto angustiada sabendo de todo sofrimento da minha mãe se eu morrer agora. Senhor, minha mãe sempre foi uma boa pessoa e não merece sofrer dessa forma. Te peço meu Deus, se for da tua vontade me restitua a vida para que eu possa cuidar dela e das outras pessoas que tenho tentado ajudar. Obrigada Senhor. 

Quando saiu da capela Sara a instruiu retornar ao quarto e descansar até o dia seguinte e aguardar pacientemente  a decisão divina.

Quando Lúcia acordou no meio da tarde estava confusa, e a primeira coisa que viu foi o largo sorriso da sua mãe perguntando:

—Então preguiçosa, vai dormir o resto do dia?

—Você está bem mãe? e tua memória como está?

—Que pergunta é essa menina? Já esqueceu que há mais de um ano fizemos os exames e testamos negativo para a Doença de Huntington? Graças a Deus a transmissão dessa doença na nossa família morreu junto com a minha mãe.

-Nem sei porque perguntei isso, acho que foi por causa de um sonho horroroso que tive.

—Também, depois de quase ter sido atropelada e ver aquele carro se espatifar no poste só pode ter tido sonhos ruins.

—Mãe, você acredita que Deus pode dar uma segunda chance a quem acabou de morrer?

—Cada pergunta que você me faz, filha. Se Deus dá uma segunda chance a quem já morreu não sei dizer, mas enquanto você dormia recebeu dois telefonemas, o primeiro uma tal de Sara avisando que você tinha recebido uma segunda chance, que o recrutador foi demitido e a vaga de emprego seria tua. Alguns minutos depois o departamento pessoal da empresa chamou pedindo que você se apresentasse lá amanhã levando todos os teus documentos.