Antes de sair para o meu primeiro dia no trabalho temporário no Shopping dou um abraço e me despeço da minha mulher, mesmo depois de cinquenta anos de casados eu sempre faço isso quando saio de casa.
—Bom
trabalho meu velho—, me diz ela com um terno sorriso divertido nos lábios. —Não
vá se engraçar com nenhuma Mamãe Noel por aí, afinal nesta época tem muitas
delas à solta querendo fisgar um coroa gostosão que nem você.
—Fique
tranquila minha velha—, respondo rindo. —Se já não gosto dos Papais Noel, gosto
menos ainda das Mamães Noel, essas jovenzinhas com suas saias curtas e botas
compradas em sex-shopping que na minha opinião é um total desrespeito ao
espírito natalino.
Quando
me aposentei minha renda caiu consideravelmente, pois boa parte do meu salário
vinha das horas extraordinárias que eu fazia. Para compensar a perda da renda
tentei ser uma espécie de “marido de aluguel” fazendo pequenos reparos
domésticos nas casas da vizinhança, mas não me adaptei a esse tipo de serviço.
Nunca me sinto completamente à vontade dentro de uma casa cujo marido não
esteja presente, então rapidamente abandonei essa ideia.
Meu
salário como aposentado é o suficiente para o sustento da minha casa e pequenas
viagens, mas o final do ano minhas despesas aumentam consideravelmente com a
compra de presentes para a família, especialmente para meus netinhos e
netinhas, cinco ao todo.
Na
principal avenida da cidade trafego a baixa velocidade. Gosto de ver a alegria
das pessoas no vai e vem das compras, algumas já antecipando os presentes
natalinos, a data que para muita gente deixou de ser uma celebração cristã para
se transformar na festa onde eles gastam o que não tem para comprar o que não precisam.
É
normalmente nesta época do ano que eles começam a surgir, como se brotassem da
terra lá estão eles, os Papais Noel. Este ano ainda não vi nem um, mas nos
próximos dias essa praga deve surgir e se alastrar por toda a cidade.
Eles
são de todos os tipos, alguns com barbas, cabelos e sobrancelhas naturais
impecavelmente brancos. Outros também com barbas, cabelos e sobrancelhas
naturais não tão brancos quase sempre por falta de um cuidado adequado. Já vi
Papais Noel com a barba branca manchada de nicotina por serem fumantes
inveterados, vi muitos com barbas artificiais que não enganavam nem mesmo as
criancinhas de colo. Vi Papais Noel que por terem apenas uma fantasia não a
lavavam com a frequência esperada. Imagine uma roupa dessas sendo usada dia
após dia, pegando no colo todo tipo de criança, algumas com falta de banho e
outras fedendo a urina. Certa vez em um shopping popular vi uma criança falando
para a mãe que achava que o Papai Noel tinha mijado na calça porque ele fedia a
xixi.
Não
gosto de Papais Noel, mas gosto do natal; gosto das celebrações litúrgicas;
gosto de montar um presépio na minha sala, e gosto da disputa entre meus netos
para decidir quem vai colocar o menino Jesus na manjedoura na noite de Natal.
Só não gosto de Papais Noel, e nem tentem me convencer a gostar dessa figura
tão estranha.
Minha
aversão ao Papai Noel surgiu ainda na infância, dois episódios eu me lembro
muito bem. Em um desses episódios eu devia ter seis ou sete anos e foi quando
conclui que Papai Noel não gostava de filhos de pobres.
Vim
de uma família muito pobre, nossas roupas eram na sua maioria usadas e doadas
pela igreja que meus pais frequentavam. No natal daquele ano ganhei alguns
brinquedos velhos e remendados, enquanto os garotos que eu considerava riquinhos
ganharam bicicletas, patinetes e outros bons e caros brinquedos da moda na
época. Fiquei com tanta vergonha dos brinquedos que ganhei que durante mais de
uma semana me recusei a sair de casa para brincar com meus amigos. Nunca
brinquei com os brinquedos que ganhei naquele Natal.
No
Natal seguinte eu só queria uma bola de capotão, como eram chamadas naquela
época as bolas de futebol feitas em couro, e ganhei apenas uma bola de plástico
que com qualquer ventinho voava longe de tão fino que era o plástico.
Se
não fosse o tal do Papai Noel, os natais da minha infância teriam sido muito
melhores. Lembro da família unida saindo de casa para ir à igreja assistir a
Missa do Galo. Lembro que logo que saíamos de casa meu pai pedia que
aguardássemos na rua pois tinha esquecido algo dentro de casa. Hoje eu sei que
ele voltava para poder colocar os presentes em cima do velho e rasgado sofá da
sala.
Lembro
do brilho dos olhos da minha mãe quando servia no almoço de natal, a galinha
assada que foi criada no nosso quintal. Lembro do doce que ela fazia com as
bananas já passadas que conseguia comprar muito barato na feira. Nossa família
tinha tanto amor que não precisava daquela figura patética do Papai Noel.
Lembro
que o Natal mais feliz da minha infância foi justamente no ano em que descobri
que o tal de Papai Noel era uma farsa. Lembro que quando abri meu pacote de
presente nele havia uma camiseta, a primeira camiseta nova da minha vida.
Lembro do abraço da minha mãe quase chorando enquanto dizia: “Desculpe
filho, mas o dinheiro não deu para comprar a camiseta do teu time de futebol
que você tanto queria”. Lembro que chorei abraçando minha mãe e dizendo que
a amava, e que aquele tinha sido o melhor presente de natal da minha vida. Se
naquele ano eu pensasse que o presente me tinha sido enviado pelo Papai Noel,
eu teria odiado e certamente diria que ele só dava as coisas que os filhos dos
ricos pediam e para os filhos dos pobres ele dava qualquer coisa.
Que
ninguém ouse pensar que sou um destruidor de sonhos, jamais neguei para criança
alguma a existência do Papai Noel.
Quando
nasceu meu primeiro filho, eu e minha mulher entramos em acordo com relação ao
Papai Noel. Quando nossos filhos ainda eram bem pequenos dizíamos que o Papai
Noel tinha muitas crianças para presentear e assim sempre dava presentes que
não custavam muito dinheiro. Dizíamos que aqueles presentes caros que as
crianças ganhavam eram comprados pelos seus pais. Durante a noite do Natal colocávamos
debaixo da árvore apenas os presentes simples atribuídos ao Papai Noel. Pela
manhã, logo depois que abriam os presentes do “Papai Noel”, dávamos os nossos
presentes. Depois vieram os netos e o Papai Noel passou a ser responsabilidade
dos seus pais; quando damos os presentes de natal a eles deixamos claro que são
presentes da vovó e do vovô porque os amamos.
Pela
avenida central vejo a decoração das lojas, muitas cores, muita luz, muitas
imagens do Papai Noel e nem uma alusão ao verdadeiro dono da festa, o menino
Jesus.
Diz
a lenda que o Papai Noel foi criado a partir da história de São Nicolau. Se
isso é realmente verdade, a sociedade é bem mais perversa do que parece. Como
conseguiram transformar aquele senhor esbelto, sóbrio e austero nessa figura
rechonchuda e bonachona? Por que tiraram dele a túnica de bispo e o vestiram com
esse ridículo pijama vermelho? Por que a
mira (faixa que os bispos usam na cabeça e que se assemelha a uma coroa)
que São Nicolau usava foi transformada em um gorrinho de duende que ao meu ver
mais se parece com o gorrinho do Saci Pererê? Está tudo errado com essa figura
criada há cem anos para a propaganda de um famoso refrigerante e que acabou
substituindo de vez a imagem de São Nicolau.
Outra
coisa que nunca entendi é como o Polo Norte e as renas entraram nessa história,
se São Nicolau nasceu e morreu no território onde hoje está a Turquia.
O
Trânsito está lento demais para este horário, uma das vias da avenida foi
interditada para que o guindaste pudesse levantar a enorme árvore de natal. Não
posso me atrasar logo no primeiro dia de trabalho, o shopping vai estar
bastante agitado hoje com a “chegada oficial do Papai Noel”
Vejo
passar por mim um carro com um Papai Noel dentro. Para onde será que ele vai?
Na cidade existem três Shoppings, será que ele vai trabalhar em algum deles e
participará da encenação da chegada oficial do Papai Noel? Pelo menos esse que
passou por mim me pareceu bem cuidado e poderá fazer a alegria da criançada
onde ele for se apresentar.
Quando
vejo um Papai Noel usando trajes limpos
e bem feitos, com impecáveis barbas brancas de preferência naturais chego a
ficar feliz, afinal não há nada de errado em usar o maior símbolo do mercantilismo que se transformou o natal para
conseguir uma renda extra em uma época de tantos gastos.
Confiro
meu relógio e constato que ainda estou adiantado, muito bom, porque a
administração do Shopping não admite que os trabalhadores temporários
contratados pela própria administração se atrasem.
Deixo meu carro no estacionamento do shopping e sigo direto para o setor de carga e descarga, local onde devo iniciar minhas atividades no dia de hoje. Antes de entrar no vestiário para vestir meu uniforme noto uma charrete estilizada como se fosse um trenó, e nela atrelado um pequeno e manso cavalo, nos arreios sobre a cabeça do animal prenderam uma galhada artificial imitando os chifres das renas. Entro no vestiário, visto meu uniforme e me preparo para meu primeiro dia de trabalho. Lá fora ouço os cascos do cavalo sobre o calçamento. Alguém entra no vestiário, olha para mim e pergunta:
—Está
pronto Papai Noel?
Abro
um sorriso, dou um sonoro ho, ho, ho, sigo em direção ao estacionamento e subo
na charrete. Não posso me atrasar, na
entrada do Shopping as crianças aguardam ansiosamente a minha chegada.