20/recent/ticker-posts

Pesquisar este blog

Trabalho temporário - Conto

      

Antes de sair para o meu primeiro dia no trabalho temporário no Shopping dou um abraço e me despeço da minha mulher, mesmo depois de cinquenta anos de casados eu sempre faço isso quando saio de casa.

     —Bom trabalho meu velho—, me diz ela com um terno sorriso divertido nos lábios. —Não vá se engraçar com nenhuma Mamãe Noel por aí, afinal nesta época tem muitas delas à solta querendo fisgar um coroa gostosão que nem você.

     —Fique tranquila minha velha—, respondo rindo. —Se já não gosto dos Papais Noel, gosto menos ainda das Mamães Noel, essas jovenzinhas com suas saias curtas e botas compradas em sex-shopping que na minha opinião é um total desrespeito ao espírito natalino.

     Quando me aposentei minha renda caiu consideravelmente, pois boa parte do meu salário vinha das horas extraordinárias que eu fazia. Para compensar a perda da renda tentei ser uma espécie de “marido de aluguel” fazendo pequenos reparos domésticos nas casas da vizinhança, mas não me adaptei a esse tipo de serviço. Nunca me sinto completamente à vontade dentro de uma casa cujo marido não esteja presente, então rapidamente abandonei essa ideia.

     Meu salário como aposentado é o suficiente para o sustento da minha casa e pequenas viagens, mas o final do ano minhas despesas aumentam consideravelmente com a compra de presentes para a família, especialmente para meus netinhos e netinhas, cinco ao todo.

     Na principal avenida da cidade trafego a baixa velocidade. Gosto de ver a alegria das pessoas no vai e vem das compras, algumas já antecipando os presentes natalinos, a data que para muita gente deixou de ser uma celebração cristã para se transformar na festa onde eles gastam o que não tem para comprar o que não precisam.

     É normalmente nesta época do ano que eles começam a surgir, como se brotassem da terra lá estão eles, os Papais Noel. Este ano ainda não vi nem um, mas nos próximos dias essa praga deve surgir e se alastrar por toda a cidade.

     Eles são de todos os tipos, alguns com barbas, cabelos e sobrancelhas naturais impecavelmente brancos. Outros também com barbas, cabelos e sobrancelhas naturais não tão brancos quase sempre por falta de um cuidado adequado. Já vi Papais Noel com a barba branca manchada de nicotina por serem fumantes inveterados, vi muitos com barbas artificiais que não enganavam nem mesmo as criancinhas de colo. Vi Papais Noel que por terem apenas uma fantasia não a lavavam com a frequência esperada. Imagine uma roupa dessas sendo usada dia após dia, pegando no colo todo tipo de criança, algumas com falta de banho e outras fedendo a urina. Certa vez em um shopping popular vi uma criança falando para a mãe que achava que o Papai Noel tinha mijado na calça porque ele fedia a xixi.

     Não gosto de Papais Noel, mas gosto do natal; gosto das celebrações litúrgicas; gosto de montar um presépio na minha sala, e gosto da disputa entre meus netos para decidir quem vai colocar o menino Jesus na manjedoura na noite de Natal. Só não gosto de Papais Noel, e nem tentem me convencer a gostar dessa figura tão estranha.

     Minha aversão ao Papai Noel surgiu ainda na infância, dois episódios eu me lembro muito bem. Em um desses episódios eu devia ter seis ou sete anos e foi quando conclui que Papai Noel não gostava de filhos de pobres.

     Vim de uma família muito pobre, nossas roupas eram na sua maioria usadas e doadas pela igreja que meus pais frequentavam. No natal daquele ano ganhei alguns brinquedos velhos e remendados, enquanto os garotos que eu considerava riquinhos ganharam bicicletas, patinetes e outros bons e caros brinquedos da moda na época. Fiquei com tanta vergonha dos brinquedos que ganhei que durante mais de uma semana me recusei a sair de casa para brincar com meus amigos. Nunca brinquei com os brinquedos que ganhei naquele Natal.

     No Natal seguinte eu só queria uma bola de capotão, como eram chamadas naquela época as bolas de futebol feitas em couro, e ganhei apenas uma bola de plástico que com qualquer ventinho voava longe de tão fino que era o plástico.  

     Se não fosse o tal do Papai Noel, os natais da minha infância teriam sido muito melhores. Lembro da família unida saindo de casa para ir à igreja assistir a Missa do Galo. Lembro que logo que saíamos de casa meu pai pedia que aguardássemos na rua pois tinha esquecido algo dentro de casa. Hoje eu sei que ele voltava para poder colocar os presentes em cima do velho e rasgado sofá da sala.

     Lembro do brilho dos olhos da minha mãe quando servia no almoço de natal, a galinha assada que foi criada no nosso quintal. Lembro do doce que ela fazia com as bananas já passadas que conseguia comprar muito barato na feira. Nossa família tinha tanto amor que não precisava daquela figura patética do Papai Noel.

     Lembro que o Natal mais feliz da minha infância foi justamente no ano em que descobri que o tal de Papai Noel era uma farsa. Lembro que quando abri meu pacote de presente nele havia uma camiseta, a primeira camiseta nova da minha vida. Lembro do abraço da minha mãe quase chorando enquanto dizia: “Desculpe filho, mas o dinheiro não deu para comprar a camiseta do teu time de futebol que você tanto queria”. Lembro que chorei abraçando minha mãe e dizendo que a amava, e que aquele tinha sido o melhor presente de natal da minha vida. Se naquele ano eu pensasse que o presente me tinha sido enviado pelo Papai Noel, eu teria odiado e certamente diria que ele só dava as coisas que os filhos dos ricos pediam e para os filhos dos pobres ele dava qualquer coisa.

     Que ninguém ouse pensar que sou um destruidor de sonhos, jamais neguei para criança alguma a existência do Papai Noel.

     Quando nasceu meu primeiro filho, eu e minha mulher entramos em acordo com relação ao Papai Noel. Quando nossos filhos ainda eram bem pequenos dizíamos que o Papai Noel tinha muitas crianças para presentear e assim sempre dava presentes que não custavam muito dinheiro. Dizíamos que aqueles presentes caros que as crianças ganhavam eram comprados pelos seus pais. Durante a noite do Natal colocávamos debaixo da árvore apenas os presentes simples atribuídos ao Papai Noel. Pela manhã, logo depois que abriam os presentes do “Papai Noel”, dávamos os nossos presentes. Depois vieram os netos e o Papai Noel passou a ser responsabilidade dos seus pais; quando damos os presentes de natal a eles deixamos claro que são presentes da vovó e do vovô porque os amamos.

     Pela avenida central vejo a decoração das lojas, muitas cores, muita luz, muitas imagens do Papai Noel e nem uma alusão ao verdadeiro dono da festa, o menino Jesus.

     Diz a lenda que o Papai Noel foi criado a partir da história de São Nicolau. Se isso é realmente verdade, a sociedade é bem mais perversa do que parece. Como conseguiram transformar aquele senhor esbelto, sóbrio e austero nessa figura rechonchuda e bonachona? Por que tiraram dele a túnica de bispo e o vestiram com esse ridículo pijama vermelho?  Por que a mira (faixa que os bispos usam na cabeça e que se assemelha a uma coroa) que São Nicolau usava foi transformada em um gorrinho de duende que ao meu ver mais se parece com o gorrinho do Saci Pererê? Está tudo errado com essa figura criada há cem anos para a propaganda de um famoso refrigerante e que acabou substituindo de vez a imagem de São Nicolau.

     Outra coisa que nunca entendi é como o Polo Norte e as renas entraram nessa história, se São Nicolau nasceu e morreu no território onde hoje está a Turquia.

     O Trânsito está lento demais para este horário, uma das vias da avenida foi interditada para que o guindaste pudesse levantar a enorme árvore de natal. Não posso me atrasar logo no primeiro dia de trabalho, o shopping vai estar bastante agitado hoje com a “chegada oficial do Papai Noel”

     Vejo passar por mim um carro com um Papai Noel dentro. Para onde será que ele vai? Na cidade existem três Shoppings, será que ele vai trabalhar em algum deles e participará da encenação da chegada oficial do Papai Noel? Pelo menos esse que passou por mim me pareceu bem cuidado e poderá fazer a alegria da criançada onde ele for se apresentar.

     Quando vejo um Papai Noel  usando trajes limpos e bem feitos, com impecáveis barbas brancas de preferência naturais chego a ficar feliz, afinal não há nada de errado em usar o maior símbolo do  mercantilismo que se transformou o natal para conseguir uma renda extra em uma época de tantos gastos.

     Confiro meu relógio e constato que ainda estou adiantado, muito bom, porque a administração do Shopping não admite que os trabalhadores temporários contratados pela própria administração se atrasem.

      Deixo meu carro no estacionamento do shopping e sigo direto para o setor de carga e descarga, local onde devo iniciar minhas atividades no dia de hoje. Antes de entrar no vestiário para vestir meu uniforme noto uma charrete estilizada como se fosse um trenó, e nela atrelado um pequeno e manso cavalo, nos arreios sobre a cabeça do animal prenderam uma galhada artificial imitando os chifres das renas. Entro no vestiário, visto meu uniforme e me preparo para meu primeiro dia de trabalho. Lá fora ouço os cascos do cavalo sobre o calçamento. Alguém entra no vestiário, olha para mim e pergunta:

—Está pronto Papai Noel?

Abro um sorriso, dou um sonoro ho, ho, ho, sigo em direção ao estacionamento e subo na charrete.  Não posso me atrasar, na entrada do Shopping as crianças aguardam ansiosamente a minha chegada.