Sobre este conto
Este conto foi escrito a partir de uma proposta lançada em um evento, onde os participantes deveriam escrever um conto sob o ponto de vista do personagem feminino do conto "Livro dos Recordes " do escritor Renato Lemos.
Trata-se de um conto forte sobre um assunto controverso que pode causar algum tipo de constrangimento em algumas pessoas.
O Último desafio
Normalmente eu não como tão depressa, mas sempre que estou com ele parece que estou tentando bater mais um recorde. Quanto tempo levou para eu devorar aquele Big Mac junto com uma Coca Cola de 300 ml? Talvez uns três minutos, mas isso não importa mais. Recordes agora fazem parte de um passado que jamais voltará.
Do outro lado da mesa ele saboreia o seu milk-shake.
É sempre a mesma coisa, eu peço um Big Mac e uma Coca Cola e ele um milk-shake.
No passado eu já teria anotado três recordes:
A velocidade com que caminhamos desde a
porta da faculdade até a lanchonete. A velocidade com que devorei meu Big Mac e
a menor quantidade de palavras ditas em meia hora.
É sempre assim; eu digo: —Oi, tudo bem? E ele
responde com um aceno de cabeça.
Houve época em que expressávamos nosso amor e
companheirismo criando todo tipo de desafios bobos. Quem ficaria mais tempo sem
sorrir vendo o outro fazer todo tipo de palhaçada, quem comeria sua poção de
fritas mais rápido, e tantas outras coisas estúpidas que inventávamos na hora.
Quase sempre quem tomava a iniciativa era eu, e ele sempre embarcava nas minhas
loucuras sem pestanejar. Na maioria das vezes quem ganhava o desafio era eu, em
algumas eu me sabotei para que ele ganhasse. Era tão gratificante o brilho nos
seus olhos e o grito de “Hurra!” sempre que ganhava, mas isso também faz parte
de um passado que eu deveria, mas não quero esquecer.
Olhando sua expressão triste do outro lado da
mesa sempre me pergunto: Se tudo isso faz parte do passado, por que quando
estou com ele continuo andando rápido para quebrar meu recorde anterior, ou
porque continuo comendo tão rápido abdicando do prazer de saborear meu lanche?
Acredito que bem no fundo eu queira preservar tudo de bom que um dia existiu
entre nós.
O mundo não perdoa quando cometemos erros e
nem pede perdão quando destrói vidas, sonhos e esperanças. Como diz uma das
músicas do Padre Zezinho, vivemos em um mundo de mil verdades e milhões de
mentirinhas, e as mesmas pessoas que destroem nossas vidas quase sempre tem
segredos inconfessáveis.
Para quebrar o silêncio e passar o tempo
comecei a contar a ele um filme que assisti na semana passada, mas ao perceber
que aquela história se assemelhava ao que aconteceu conosco disse que tinha
esquecido do final.
Mais de uma vez ensaiei tocar naquele assunto
tão delicado, mas de repente me dá um nó na garganta e não consigo dizer mais
nada.
Queria que ele soubesse de muitas coisas que
guardo no meu peito há mais de três anos, mas nunca tive coragem de lhe dizer.
Nossos desafios eram sempre inocentes e
aquele último deveria ter sido assim, mas acabou de uma forma tão inusitada que
abalou a vida de algumas pessoas.
Nós estávamos na beira da piscina do
condomínio quando eu lancei o desafio de quem conseguiria ficar mais tempo sob
as águas. Na verdade, eu não estava sendo totalmente honesta, já que
secretamente vinha treinando prender a respiração por alguns minutos.
Eu pulei primeiro, aguardei meu corpo se
habituar com a temperatura da água, fiz algumas inspirações aprofundas e a
seguir mergulhei em direção ao fundo azul da piscina. Segurei a respiração o
quanto pude e ao sair, o cronômetro marcava um minuto e trinta segundos.
Assim que recuperei meu fôlego e segurei o
cronômetro ele pulou. Eu tinha certeza que ele não chegaria nem a um minuto,
mas o tempo foi passando e ele não subia. Fiquei preocupada, mas sabia que não
era louco ao ponto de pôr sua vida em perigo por causa de mais um desafio bobo.
Quando o cronômetro marcou um minuto e meio ele emergiu, mas não me parecia
muito bem, não falava e nem respirava. Pulei na água e levei-o até a escada.
Meio que atabalhoadamente ele conseguiu subir até a borda, mas tombou logo a
seguir dando socos no peito como se não conseguisse respirar. Não tive dúvidas,
abri as pernas, sentei sobre sua barriga e iniciei uma respiração boca a boca.
Rapidamente ele tossiu, expeliu uma grande quantidade de água, mas parecia que
ainda estava tendo dificuldades em respirar, então colei novamente meus lábios
no dele reiniciando a respiração boca a boca.
Não sei dizer exatamente quando a respiração
boca a boca se transformou em um beijo, só me dei conta disso quando senti sua
língua invadindo minha boca.
Eu poderia ter me afastado, poderia ter saído
de cima dele, poderia até ter lhe dado um tapa na cara, mas não foi nada disso
que fiz, aceitei aquele beijo e o retribui da melhor forma possível já que com
pouco mais de quinze anos de idade tinha beijado poucos rapazes.
Quando nossos lábios se separaram olhei para
ele meio que enternecida e horrorizada. Como era possível que meu próprio pai
me tivesse beijado daquele jeito e eu ter correspondido sem reservas?
Não houve tempo para dizermos uma palavra a
respeito, logo os funcionários do condomínio nos cercaram e minha mãe foi
chamada, a partir daí não sei mais o que aconteceu.
Em um primeiro momento ele foi proibido de
entrar em casa e se aproximar a menos de duzentos metros de mim, depois houve
um julgamento e ele foi condenado a me pagar pensão alimentícia e só me veria
uma vez a cada mês e mesmo assim sob supervisão de um conselheiro tutelar.
Nós erramos e toda a culpa recaiu sobre ele.
É irônico lembrar que dois meses antes, minha mãe que tem mania de grandeza ter
patrocinado para mim um baile de debutante. Após aquela encenação toda, meu
namorado com idade de dezessete anos me beijou com muito mais volúpia do que o
beijo que meu pai me deu, e nem por isso foi recriminado e condenado a coisa
alguma.
Às vezes fico me perguntando: E se eu não
tivesse proposto aquele desafio? E se ele tivesse saído da piscina antes de se
afogar? E se ao expelir aquela grande quantidade de água tivesse conseguido
respirar normalmente evitando assim que eu retomasse a respiração boca a boca?
Será que ele, minha mãe e eu estaríamos vivendo tão felizes quanto antes?
Meu pai era realmente feliz nos quase vinte
anos que viveu com a minha mãe? Aquele beijo não foi o ato final de um
relacionamento baseado em mentiras e aparências?
Nesses últimos três anos, sob as mais
variadas desculpas deixei de comparecer à vários encontros, algumas vezes por
iniciativa própria, outras por uma imposição velada da minha mãe.
Minha vida nunca mais foi a mesma, virei uma
espécie de órfã de pais vivos, pois além de perder meu pai, minha mãe me trata
como se eu fosse um peso na sua vida. Chego a suspeitar que ela só denunciou e
processou meu pai por ciúmes, por medo de perder seu homem para mim.
Olho novamente para meu pai do outro lado da
mesa, e mais uma vez um grande bolo se forma no meu estômago e um nó na minha
garganta.
Que direito tinha aquele povo de julgá-lo por
um beijo que deve ter durado um tempo menor do que ele ficou submerso?
Muitas vezes me pergunto onde estavam os
funcionários do condomínio que viram o beijo, mas não moveram uma palha para salvá-lo
quando estava se afogando.
Parte-me o coração, ele está tão triste,
esses encontros nesse formato tem sido um grande equívoco, isso tem que acabar
e tem que acabar agora.
Atirei na lixeira o lixo resultante do meu
lanche. Quando percebi que meu pai fez o mesmo venci todas as minhas barreiras
e falei:
—Sabe aquela foto nossa que você tanto
gostava? Ela continua sobre a minha cômoda, aliás coloquei-a em um porta-retratos
novinho em folha.
—Você ainda guarda aquela foto?
—Não só a foto, mas também a camisa do Ramones,
o copo do Circo de Soleil , o ingresso do show que assistimos juntos, o livro
de contos, o caderno de poesias e até a fita de Nossa Senhora Aparecida. Tudo
está bem guardado.
Percebi que seus olhos marejaram quando
perguntou quase que sussurrando:
—Por que guardou essas coisas?
—Guardei tudo porque essas coisas são o único
elo que tenho com aquela pessoa que eu era e um dia quero voltar a ser; o único
elo com aquela pessoa que você era e que um dia espero ver se revelar
novamente.
Dizendo isso, resolutamente levanto e quando
ele também levantou abraço-o afundando meu rosto no seu ombro.
Ouvi os passos do Conselheiro tutelar, mas
ele parou ao nosso lado e nada disse, como se sentisse na pele o drama que se
passava bem na sua frente.
Queria dizer muita coisa ainda, queria pedir
perdão por não ter resistido àquele beijo, queria gritar para o mundo a
inocência daquele homem, mas a única coisa que consigo fazer é chorar e soluçar
por um tempo maior do que durou aquele fatídico beijo.