O Profeta

   Toda manhã ele podia ser visto sentado no banco da praça. Era sempre o mesmo banco bem em frente a faixa de segurança da avenida. Desde que começou a frequentar aquela praça mudou de banco uma única vez, e ele se lembrava muito bem daquele dia. Como sempre a praça estava deserta e como acontecia em todos os dias úteis, aquela jovem que vinha do outro lado da praça, passaria ao lado do banco que agora ele ocupava, caminharia cinquenta metros pela calçada e atravessaria pela faixa de segurança, mas naquele dia ele teve que intervir no curso natural da história.

   Naquela manhã Priscila caminhava em direção a faculdade quando percebeu que o velho, como todos o chamavam, estava sentado em um banco diferente daquele que ela já tinha se habituado a vê-lo todas as manhãs. Priscila ficou intrigada, mas não deu muita atenção ao fato já que isso era problema dele e não dela. Ao se aproximar do banco onde o velho estava sentado, ele tombou no chão e começou a pedir ajuda. Priscila não vacilou, segurou no braço do velho ajudando a sentar-se no chão enquanto perguntava o que ele estava sentindo. O nariz do velho estava sangrando, ele parecendo estar com dificuldades para respirar disse:    — Por favor, me ajude a sentar no banco, vou ficar bem. Mal o velho sentou ouviram o barulho de uma freada, e viram um veículo que saiu em alta velocidade de uma travessa capotar bem em cima da faixa de segurança e rolar pelo asfalto até subir na calçada e se espatifar no banco onde o velho costumava sentar.    Naquele exato momento ela se deu conta que se não tivesse parado para ajudar o velho provavelmente estaria morta.

   Priscila pensou em ir ajudar o motorista acidentado, mas suas pernas fraquejaram, então se virou para sentar-se ao lado do velho, mas ele não estava mais lá, não deu nem para agradecer a ele por ter salvo sua vida.

   Quando conseguiu se recuperar do susto, uma viatura policial já estava parada no local do acidente e uma pequena multidão se formava. Uma policial com a prancheta na mão já interrogava as pessoas provavelmente em busca de testemunhas. Priscila não queria parar, e muito menos testemunhar, aquilo não levaria a nada já que não houve outro veículo envolvido, e os ocupantes daquele carro provavelmente estivessem mortos. Pensando assim ela atravessou a avenida fora da faixa de segurança no mesmo local onde se encontrava, e seguindo por outra travessa caminhou em direção à faculdade.

   No intervalo entre uma aula e outra, Priscila comentou com os colegas de faculdade sobre o acidente e sobre o fato de que se não tivesse parado para ajudar aquele velho provavelmente seria atingida pelo carro desgovernado. Em meio a tantas perguntas comentou que a impressão que teve foi que o velho sabia o que ia acontecer e a parou de propósito.

   Na manhã seguinte Priscila saiu de casa dez minutos mais cedo, se o velho estivesse como sempre sentado naquele banco ia pedir a ele algumas explicações.

   —Posso me sentar? — Perguntou Priscila ao parar bem em frente do banco onde o velho estava sentado.

   —Certamente que pode, eu já estava esperanto por isso.

   —Como o senhor está? Afinal ontem estava sentindo algum mal estar e seu nariz sangrava.

   —Estou bem. Não se preocupe com meu nariz, ele sempre sangra.

   —Ontem me deu a impressão que o senhor me parou de propósito, Já sabia o que ia acontecer?

   —Eu sei de muitas coisas garota.

   —Como sabe essas coisas?

   —Perguntas demais para um desconhecido.

   Priscila sentiu as faces queimarem, pois sabia que não devia estar interrogando daquela forma quase agressiva a pessoa que lhe salvou a vida.

   —Desculpe senhor, é que tenho tantas dúvidas que me precipitei. Qual o seu nome?

   —Ezequiel, e qual o teu?

   —Ezequiel como o profeta?

   —É, temos o mesmo nome, e você ainda não me disse teu nome.

   —Meu nome é Priscila.

   —Bonito nome. Você sabia que Priscila, mulher de Áquila foi uma grande aliada de Paulo de Tarso na propagação do cristianismo?

   —Caramba, eu não pensava que meu nome era bíblico. O senhor lê muito a bíblia.

   —Leio muitas coisas, e a bíblia é uma delas.

   —O senhor é profeta ou algo do gênero?

   —Sou apenas um velho que gosta de ficar sentado nesta praça vendo o movimento da manhã, e quando dou sorte alguém senta ao meu lado para conversar.

   —O senhor não me parece tão velho assim, só essa barba por fazer que lhe envelhece um pouco.

   —Cortar a barba dá muito trabalho.

   —Bem, está na hora de eu ir para a faculdade, posso parar aqui amanhã para conversar?

   —Qual o teu interesse em conversar com um velho solitário?

   —Na faculdade estou cursando letras. Sonho em me tornar uma grande escritora e conhecer muita gente e ouvir suas histórias faz parte do processo criativo.

   —Pare sempre que quiser, afinal ao meu lado quase nunca senta alguém.

   Na manhã seguinte, antes de chegar na praça Priscila parou na lanchonete, comprou um copo com café para viagem e seguiu em direção à praça.

   —Trouxe para o senhor—, disse ela ao entregar o café para Ezequiel. —Achei que ia gostar.

   —Às vezes um copo com café quente é tudo o que precisamos para iniciar o dia com disposição. Como sabia que eu queria um café nesta manhã?

   —Não sei, apenas pensei que o senhor gostaria.

   —Continue seguindo tua intuição Priscila, isso sempre ajuda.

   —O senhor acredita em intuição?

   —Me diga você. Por que algumas pessoas já ganharam várias vezes nas loterias mesmo jogando pouco e outras nunca acertam mesmo fazendo várias apostas?

   —Sorte, talvez?

   —Não se trata de sorte e sim da intuição.

   —E em profecias o senhor acredita?

—A maioria das profecias são como alguém dar um tiro em um muro e depois outra pessoa pinta um alvo em torno da bala. Veja o exemplo de Nostradamus, ele escreveu mil profecias bastante vagas. No decorrer de um único dia milhões de fatos que ocorrem no mundo se encaixam perfeitamente a uma dessas profecias.

   —Então as profecias são uma fraude?

   —Na maioria das vezes sim, mas acredito que existam pessoas com a capacidade de prever não o futuro, mas alguns fatos distintos.

   —E sobre minha pessoa, o senhor teve alguma outra intuição fora aquela que me livrou de ser atropelada?

Priscila notou que ele teve um pequeno sobressalto e uma gota de sangue escorreu pelo seu nariz antes de responder:

   —Nada sei sobre você, mas tenha cuidado com teu colega de faculdade que tem o nome de um rio. E agora por favor, me deixe sozinho.

   Priscila seguiu para a faculdade “encucada” com o que Ezequiel disse. Estaria ele se referindo a Nilo seu colega de faculdade que vivia se metendo em enrascadas por causa de suas dívidas com jogos? De qualquer forma ela não tinha nenhuma intimidade com ele.

   Os dias se passam e Priscila soube muita coisa de Ezequiel, soube que ele tinha um irmão cadeirante que tentava ganhar a vida vendendo doces na frente de uma estação do metrô. Soube que sua mãe evangélica fanática o expulsou de casa quando algumas coisas que ele previu acabaram acontecendo.

   Muitas vezes o assunto Ezequiel era o preferido da turma durante os intervalos das aulas, e Nilo como sempre prestava muita atenção em tudo o que Priscila dizia.

   Naquela manhã Priscila parecia triste quando sentou ao lado de Ezequiel.

   —Nossos encontros vão acabar, serei forçada a trancar minha matrícula no final do ano e voltar para a casa dos meus pais no interior.

   —Qual o motivo, posso saber?

   —Motivo financeiro. Este ano letivo termina em duas semanas, meus pais não conseguirão mais pagar a faculdade e o aluguel da quitinete onde moro.

   —Quanto tempo falta para você se formar?

   —Caso não tranque a matrícula formo no final do ano que vem.

   Nesse momento Priscila notou que novamente uma gota de sangue escorria do nariz de Ezequiel.

   —Se eu te der uma solução promete guardar segredo e cumprir à risca minha sugestão?

   —Prometo qualquer coisa desde que não precise interromper meus estudos.

   —Anote as cinco dezenas que vou falar. Logo que sair da faculdade jogue essas dezenas na quina das loterias, mas faça isso ainda hoje porque o concurso é amanhã.

   —O senhor está me dizendo que vou ganhar na loteria?

   —Não será nenhuma fortuna, mas será o suficiente para pagar a tua faculdade pelo tempo que resta até a formatura e o aluguel da quitinete que ocupa pelo mesmo tempo.

    —E o que quer que eu prometa?

   —Que pague as mensalidades restantes da faculdade até a tua formatura antecipadamente, e que antecipe o pagamento do aluguel da quitinete pelo mesmo tempo.

   —Só isso?

   —Não comente com ninguém exceto tua família sobre a loteria, não comente nem com a tua família sobre quem te forneceu os números para apostar, e o mais importante, nunca me peça para te ajudar nos teus problemas financeiros, o universo sempre saberá a hora que devo intervir. Agora vá para tua aula e faça exatamente o que eu disse.

   Em um dia que Priscila não compareceu à faculdade a conversa no intervalo da aula foi que tinha vazado a informação que Priscila antecipou o pagamento das mensalidades até o final do curso. Como eles se perguntavam, se Priscila esteve a ponto de trancar a matrícula por falta de recursos?

   Naquele primeiro dia sem aulas na faculdade, ao invés da agradável companhia de Priscila de todas as manhãs Ezequiel recebeu a desagradável visita de Nilo.

   —Bom dia velho. A gatinha foi para a casa do papai e não veio te visitar hoje?

   —Neste banco sentam muitas pessoas, e a garota é só mais uma delas.

   —Foi tu que de alguma forma fez ela arrumar a grana para pagar a faculdade?

   —Não faço a menor ideia sobre o que você está falando.

   Aproveitando que a praça estava deserta, Nilo agarrou Ezequiel pela gola do paletó e disse:

   —Presta atenção velho, eu sei que você adivinha as coisas. Você vai me ajudar a conseguir uma grana caso contrário tanto você como teu irmão aleijadinho vão se dar mal.

   —Não é assim que as coisas funcionam, eu só consigo das às pessoas aquilo que elas realmente precisam.

   —Eu preciso de grana velho.

   Naquele momento Ezequiel sentiu uma gota de sangue escorrendo da sua narina, ele sabia que não receberia do universo informações que pudessem colaborar com motivos sórdidos, então respirou fundo e disse:

   —Por hoje só posso te dar alguns palpites para a corrida de cavalos.

   —Diz aí velho, vou anotar.

   Três dias depois Ezequiel ainda se recuperava do desgaste emocional que teve ao saber que seu irmão tinha sido empurrado e rolou três degraus de uma escada com sua cadeira de rodas, quando Nilo sentou-se novamente ao seu lado.

   —Velho, você conseguiu me deixar emputecido, me fez gastar toda minha grana apostando em pangarés que não ganharam nada. O que aconteceu com teu irmãozinho foi só o começo, a próxima escada não terá só três degraus.

   —Deixe meu irmão em paz—, replicou Ezequiel que já buscava no bolso o lenço para conter o forte sangramento do nariz.

   —Se quer que eu deixe teu irmão em paz faça o que eu te pedi.

   —Ok, vou te contar meu segredo. Eu não tenho dom algum, eu descubro as coisas só depois que tomo uma poção que um velho bruxo me fornece. A poção acabou e por isso eu errei no palpite das corridas.

   —O bruxo me entrega uma vez por ano poção em quantidade suficiente para um ano, e a próxima remessa só vou receber na próxima semana.

   —Que dia vai receber?

   —Uma das exigências dele é que eu arrume um mensageiro de confiança, nós temos uma antiga divergência e ele não as entrega diretamente para mim. Ainda não encontrei esse mensageiro.

   —Posso ser eu?

   —Sim, pode. Te dou as coordenadas e aviso o bruxo.

   —Me diga o que devo fazer.

   —Mande estampar em letras bem grandes uma camiseta com a mensagem “I Am The Messenger” (eu sou o mensageiro). Vista a camiseta e vá ao local do encontro exatamente no dia e hora que eu te falar. O mensageiro dele que deve estar usando uma camiseta com a mesma mensagem vai até você, entrega a encomenda e vai embora sem dizer uma única palavra. Você recebe a encomenda e me entrega aqui mesmo no dia seguinte.

   —Quando e onde?

   —Na madrugada do próximo domingo, exatamente às três horas e sete minutos da madrugada. Quanto ao local passe por aqui amanhã que te entrego um papel com tudo anotado.

   Nilo saiu do encontro esperançoso, pegaria a poção na madrugada do domingo e devia entregue-la ao velho somente na segunda. Haveria tempo de sobra pra tomar um gole, se funcionasse ficaria com a poção para si.

   Naquela manhã de segunda feira, como sempre Ezequiel estava sentado no banco da praça. Naquele dia ele parecia mais feliz, pois sabia que Nilo não compareceria ao encontro que tinham marcado.

   No outro lado da praça o jornal dependurado na banca exibia a manchete: Carro desgovernado atinge pilastra de viaduto e mata um jovem. O curioso é que ninguém conseguia explicar o motivo de ele estar encostado naquela pilastra em plena madrugada de domingo usando uma camiseta estampada com uma mensagem enigmática: “I Am The Messenger”.

Por S. Esteves