A pandemia na terra do faz de conta

Esta crônica foi selecionada para fazer parte da Coletânea "A Humanidade pós Pandemia" da Editora PerSe


Com a vista ofuscada pelas luzes e pela fumaça dos fogos de artifício queimados em comemoração ao Réveillon do ano de 2019, a humanidade não se deu conta da grande ameaça que a partir da Ásia Oriental silenciosamente se infiltrava em quase todos os países do mundo, a COVID-19.

Quais os reflexos dessa pandemia no futuro da humanidade?

Muito tem se falado sobre esse tema, comparações com a peste negra e gripe espanhola tem sido feitas, mas realmente existe algo em comum entre essas três pandemias? Acredito que não, entretanto, somente a história mostrará a verdade.

Identificado pela primeira vez em uma grande cidade da China no início do mês de dezembro de 2019 e tendo o primeiro caso confirmado no final daquele mesmo mês, o vírus rapidamente se espalhou pelo mundo, e em apenas vinte dias já estava presente na Europa.

Como desde a gripe espanhola ocorrida há mais de cem anos as grandes nações do mundo não tinham enfrentado outras pandemias, a COVID-19 pegou a todos completamente despreparados para enfrentar tal situação, e assim a única medida para minimizar a disseminação da doença foi o isolamento social. Como ratos de esgoto que se escondem para evitar ataques dos humanos, tivemos que nos trancafiar dentro de nossas casas deixando para trás nossas profissões, nosso lazer, nossas atividades sociais e até mesmo nossos cultos religiosos.

Infelizmente no Brasil, a prevenção para a disseminação da pandemia demorou demais a acontecer. Enquanto que ainda em fevereiro a Europa Oriental  já praticava o isolamento social e o mapeamento de novos casos, o Brasil irresponsavelmente promovia o maior carnaval da sua história, permitindo que durante dez dias cinquenta milhões de brasileiros e estrangeiros que para cá vieram trazendo consigo o vírus  da COVID se aglomerassem  nas vias públicas, clubes e salões.

A disseminação da doença ocorreu por todo o Brasil a uma velocidade muito maior que na maior parte do mundo. Enquanto que no país vizinho, o Uruguai, que não impôs o isolamento social por decreto, o número de casos da COVID é de menos de trezentos por milhão de habitantes, no Brasil chega a quase oito mil. Enquanto que no Uruguai o número de mortes a cada um milhão de habitantes é oito, no Brasil esse número passa dos trezentos. Mas qual a causa dessa disparidade? A causa provavelmente seja o comportamento da população. No Uruguai bastou um alerta das autoridades de saúde para que o povo voluntariamente promovesse o isolamento social e cumprisse todas as regras de prevenção tais como o uso de máscaras, distanciamento social e higienização das mãos sempre que saíssem de casa. No Brasil, mesmo com decretos, multas e ameaças de todo tipo, mais da metade da população não colaborou, chegando ao ponto da prefeitura da maior cidade brasileira ser forçada a cercar parques municipais e as cidades litorâneas terem que interditar as praias e promover bloqueios para impedir a entrada de turistas.

A doença foi se espalhando pelo mundo e junto com ela mudanças de comportamento. Pessoas se decepcionaram com amigos, vizinhos e colegas de trabalho vendo que esses ao desrespeitarem as regras de isolamento demonstravam pouco se importarem com a saúde ou bem estar das pessoas que os rodeavam e junto com essa decepção veio a certeza de que talvez estivéssemos, até então,  confiando nas pessoas erradas. Como sempre aconteceu em toda história da humanidade o mundo foi se dividindo em dois lados antagônicos, os que colaboravam para a contenção da pandemia e os que sabotavam qualquer plano que se apresentasse.

Mais uma vez durante toda a pandemia a tríade medo, fé e esperança passou a ditar o comportamento da sociedade. Por todos os lados se ouvia: —Acredite, isso vai passar.  ou —Tenha fé, isso também vai passar.

Se por um lado o povo brasileiro é arredio em cumprir normas e regras, por outro talvez seja um dos povos mais solidários do mundo. Individualmente ou em grupos as pessoas começaram a arrecadar roupas e alimentos para serem doados aos mais necessitados que foram duramente afetados pela pandemia. Roupas, alimentos, materiais de limpeza e higiene foram distribuídos sem o necessário alerta: Essas doações um dia vão parar.

No rastro do festival de “bondades” criado pela pandemia, grandes empresas, sabe-se lá por quais interesses, fizeram vultosas contribuições em dinheiro e equipamentos para o controle da pandemia, assim como milhares de cestas básicas foram distribuídas aos mais necessitados, e mais uma vez ninguém lembrou de alertar que essas doações eram temporárias e um dia iriam deixar de ser feitas.

O fantasma do desemprego, junto com a supressão de renda principalmente das classes mais humildes, obrigou alguns governantes a criarem auxílios emergências, pois sabiam que a fome poderia desencadear revoltas e saques. Outros países resolveram investir na preservação dos empregos, auxiliando as empresas no custeio da folha de pagamento, mas em ambos os casos os cofres dos já combalidos orçamentos de alguns governos foram quase que completamente dilapidados, gerando dívidas monumentais que um dia terão que ser pagas à custa do sacrifício do povo.

A pandemia da COVID-19 não só afetou a saúde de muita gente e ceifou milhares de vidas, ela também ceifou sonhos e oportunidades, sequestrou um ano inteiro da vida de milhões de pessoas.

Boa parte da humanidade teve que se reinventar, desenvolvendo novas aptidões para conseguir sobreviver e, como sempre acontece, um novo termo foi inventado para descrever esse estado de coisas, o “novo normal”, que nada tem de novo e muito menos de normal. Assim o pequeno comerciante já falido teve que virar motoboy, o artista de circo virou padeiro, a cabeleireira virou cozinheira fornecendo comida pronta para suas antigas clientes.

O conceito de Home Office que desde os anos noventa do século passado vinha se arrastando, ganhou nova força.

O comércio eletrônico que na verdade é a modernização do antigo sistema de vendas por catálogos existente nos Estados Unidos da América do Norte desde o século XVIII com o lançamento do famoso Wish Book da Sears que continha mais de setecentas páginas de produtos que podiam ser adquiridos por correspondência e até por telégrafo, se modernizou com a chegada da Internet e deslanchou durante os meses de isolamento social.

Outro segmento que se modernizou com a chegada da internet foi o ensino à distância existente no Brasil há mais de oitenta anos funcionando através dos cursos por correspondência. Durante a pandemia as autoridades responsáveis pela educação e as escolas particulares tiveram que correr, improvisar e fazer uso de softwares de terceiros para criarem seus sistemas de aulas online, deixando na maioria dos casos a preparação dessas aulas sob a responsabilidade de professores que nem sempre estavam capacitados a lidar com essa tecnologia.

Com o Brasil mantendo há vários meses a média de mais de mil mortes diárias por COVID-19, as autoridades de várias regiões decidiram ouvir a população sobre a conveniência do retorno às aulas presenciais nas escolas públicas, e a pesquisa mostrou que cerca de oitenta por cento dos pais não achava seguro mandar seus filhos para a escola, assim sendo na maioria dessas cidades o retorno às aula ficou adiado para o ano letivo de 2021.

Após oito meses desde o seu início, a pandemia pelo mundo vive de altos e baixos. A Europa teme uma segunda onda após o aumento do número de casos, e alguns países já cogitam fechar novamente as fronteiras. Nos Estados Unidos da América do Norte, após acabarem precipitadamente com o confinamento o número de novos casos e de mortes disparou obrigando o governo voltar atrás.

Mas e o Brasil? Como está se comportando após cinco meses de confinamento?

Movidos pela diminuição do número de casos e óbitos, e também na taxa de ocupação das UTIs dos hospitais, algumas regiões começaram a flexibilizar a quarentena permitindo algumas atividades comerciais não essenciais, e o que se viu em algumas cidades foi o total desrespeito aos protocolos instituídos pelas autoridades. No dia que os Shopping Centers reabriram, grandes filas e aglomerações se formaram nas portas desses estabelecimentos e muita gente só colocava a máscara no momento que iam entrar. A impressão que se tem é que vivemos em um mundo do “faz de conta”. Muitos estabelecimentos comerciais e boa parte do  povo fazem de conta que que estão cumprindo todos os protocolos, e muitas autoridades fazendo de conta que estão fiscalizando.

Na fase de flexibilização muitas cidades litorâneas permitiram algumas atividades nas praias desde que se cumprissem todos os protocolos para evitar a contaminação, porém logo no primeiro dia de sol as praias foram tomadas por milhares de turistas montando seus guarda sóis e cadeiras, o que continuava proibido, promovendo aglomerações e grande parte deles nem máscara estava usando.

Agora vem a pergunta. O que esperar da humanidade depois que essa pandemia estiver pelo menos sob controle e houverem vacinas e medicamentos eficazes? Muitos apostam em uma nova ordem mundial, outros em uma espécie de renascimento como ocorreu na Europa no século XIV após o fim da peste negra, mas até mesmo os mais otimistas sabem que isso não passa de uma utopia.

Como esperar uma nova ordem mundial se as grandes potências continuam se digladiando pela supremacia comercial? Como esperar uma nova ordem mundial quando países desrespeitam todos os protocolos para lançar rapidamente uma vacina para a COVID-19 não por preocupação com a saúde pública e sim para aumentar seu prestígio no mundo?

Acreditar em uma espécie de renascimento como ocorreu na Europa após a pandemia da peste negra é no mínimo desconhecer a história. A Peste negra foi apenas um dos fatores dentro do contexto das mudanças que culminaram com o renascimento, movimento artístico, filosófico e cultural que permitiu a mudança de mentalidades na sociedade europeia. Entretanto, os fatores mais importantes foram as cruzadas que provocaram o renascimento comercial na Europa, e a revolução burguesa que enterrou de vez o feudalismo.

Outros ainda apostam que a pandemia da COVID-19 nos deixe algum legado como deixou a pandemia da gripe espanhola, mas afinal que legado foi esse? As principais armas para conter a gripe espanhola foram: o isolamento social, o uso de máscaras e maiores cuidados com a higiene. Lamentavelmente grande parte da população atual não acredita nesses cuidados para conter a COVID-19 e assim essa herança está sendo jogada no lixo.

Existe uma diferença gritante entre ter um conhecimento e usar esse conhecimento com sabedoria. De nada adianta eu saber que a principal forma de disseminação da doença são as aglomerações, se no primeiro dia da reabertura dos shoppings eu me colocar no meio de um grande grupo de pessoas, como se uma visita ao shopping fosse vital para a minha vida. De nada adianta eu saber que o uso de uma simples máscara pode salvar a minha vida se eu por teimosia me recusar a usá-la. O que esperar no futuro, se essa multidão de rebeldes sem causa, que sem mesmo saber o porquê, sabotam todas as iniciativas que possam ajudar a controlar a pandemia?

As maiores transformações que a humanidade verá em um futuro próximo provavelmente não serão algum tipo de legado da pandemia, e sim produto da revolução tecnológica em andamento com o uso da inteligência artificial. Teremos que nos habituar a conviver com aparelhos robotizados e inteligentes em nossas casas, nas ruas, nas escolas e até nos consultórios médicos. Se os cinemas de rua foram esmagados pelas salas nos shoppings, essas mesmas salas serão derrotadas pelas tecnologias que nos permitem assistir nossos filmes prediletos pelos sistemas de stream no conforto de nossas casas, em telas gigantescas de alta definição e com um sistema de som capaz de fazer inveja aos melhores cinemas do mundo. Dirigir também será coisa do passado; a supermáquina, o super automóvel da famosa série dos anos oitenta do século XX talvez esteja bem mais próxima do que imaginamos.

Aparentemente não haverá um padrão para o mundo pós pandemia, tudo vai depender da cultura e de como a população enfrentou a ameaça. Se a população de países como o Brasil e os Estados Unidos da América do Norte tivessem se comportado como o povo do Uruguai, do Camboja, do Japão e da Tailândia, certamente a pandemia já estaria sob controle e a retomada das atividades econômicas e culturais já teria ocorrido há mais tempo. Só para se ter uma ideia, no Japão que tem cento e trinta milhões de habitantes o total de mortes pela COVID-19 é menor do que as mortes contabilizadas em um único dia no Brasil. Detalhe: O Japão não fechou fronteiras nem impôs nenhum tipo de bloqueio, o uso de máscaras e o distanciamento social foi um ato voluntário do seu povo.

É preocupante pensar no futuro de algumas nações após a pandemia.

O que esperar de um povo que não achou seguro que seus filhos voltassem às aulas mesmo as autoridades afirmando que todas as medidas de segurança para evitar a contaminação das crianças estavam sendo tomadas, e alguns dias depois não viu problema algum em colocar essas mesmas crianças no meio de uma multidão de pessoas sem máscara apenas para desfrutarem de um dia de sol na praia?

Como esperar um futuro melhor se muitos dos jovens que estarão à frente das empresas e muitas vezes das nações não respeitaram nada e nem ninguém durante a pandemia, andando pelas ruas sem usar máscaras, promovendo aglomerações e frequentando festas e baladas clandestinas?

Como ter fé no futuro de um povo se as crianças que serão os adultos desse futuro se acostumaram a ver seus pais desrespeitando leis, as normas de trânsito, e sobremaneira os protocolos de prevenção da COVID-19?

Muitas pessoas acreditam que o chamado “novo normal” vá se perpetuar o que é pouco provável. Depois da pandemia o povo voltará a comprar seus pães na padaria, e o artista que fazia pão para vender voltará a atuar na sua profissão, a cabeleireira que vendia refeições reabrirá seu salão e a sua clientela voltará a frequentar os restaurantes. Depois da pandemia as pessoas que já praticavam a caridade e o voluntariado continuarão se envolvendo nessas atividades, enquanto que a maioria dos “novos prosélitos” abandonarão tudo para voltar à sua rotina.

O que talvez tenha se fortalecido durante a pandemia e venha a se perpetuar seja o trabalho em Home Office, e mesmo assim esse tipo de trabalho tende a excluir muita gente que poderia ver nele um futuro melhor para si e sua família, porque de nada adianta ser um profissional competente se não tiver um computador a altura do trabalho a ser realizado e uma conexão com a internet rápida e confiável.

Outro segmento que por absoluta necessidade cresceu durante a pandemia e tende a voltar aos patamares anteriores é o ensino a distância. Essa modalidade de ensino conta com três inimigos que a impedirão de se perpetuar. O primeiro inimigo é o total despreparo dos sistemas de ensino e da maioria dos professores para lidarem com a tecnologia necessária para o seu funcionamento. O segundo é que grande parte dos alunos não dispõe de equipamentos adequados para acompanhar as aulas, e muitos deles nem ao menos tem acesso à internet. E o terceiro será difícil quebrar o paradigma de que os alunos só aprendem se estiverem dentro de uma sala de aula.

Finalmente, terminada a pandemia o mundo terá que conviver por anos, talvez décadas com os danos causados por ela. Vidas foram ceifadas, muitas delas de pessoas que muito contribuíram para o bem estar e crescimento da humanidade. Muitas pessoas e famílias tiveram sua renda e seu orçamento tão abalados que talvez nunca mais recuperem o padrão de vida que tinham antes da pandemia. Estudantes que perderam o ano letivo terão que se esforçar muito para se recuperarem. Aquele comerciante falido que foi forçado a trabalhar como motoboy talvez jamais consiga se recuperar.

Os países que enfrentaram a pandemia de forma inteligente provavelmente retomem a atividade econômica rapidamente, ao passo de outros, como o Brasil que permitiram que a pandemia se alastrasse sem controle poderão ter um pós pandemia traumático, pois com os cofres governamentais dilapidados e dívidas quase que impagáveis os governantes serão obrigados a cortar gastos até nas coisas mais básicas como saúde, educação e segurança. Sem dinheiro para gastar e também para investimentos que promovam o crescimento, os governantes não terão outra saída a não ser aumentar a arrecadação via impostos, penalizando sobretudo a população menos favorecida.

O que se espera é que essa pandemia tenha trazido o alerta de que a estrutura social e a ordem mundial são bem mais frágeis do que imaginamos.

Talvez a coisa mais marcante depois da pandemia possa ser reduzida em uma única frase:

Ufa! Até que enfim acabou.

Por S. Esteves