Maria

        Sei que não estou febril. O termômetro na parede da cozinha marca trinta graus celsius, mesmo assim sinto frio e transpiro muito.

Todo auto controle que eu julgava ter e todo planejamento dos últimos quinze dias não foram suficientes para me preparar para este momento crucial.

Sobre a mesa da cozinha quatro objetos: O frasco com comprimidos antidepressivos, o frasco com comprimidos para dormir, a garrafa com vodca e um revólver com cinco balas no tambor. Há quinze dias quando planejei o que ia fazer hoje, eu sabia exatamente o que desejava e deveria fazer, agora já não tenho muita certeza.

Há quinze dias nem o frasco com antidepressivos nem os com comprimidos para dormir não saíam da gaveta do meu criado-mudo, há dois meses a garrafa com vodca não saia do congelador, e há seis meses quando o limpei pela última vez o revolver não saia de cima do guarda-roupas. Se a combinação de apenas duas dessas coisas que estão sobre a mesa já pode causar resultados imprevisíveis, imagine as quatro juntas o que pode causar.

Estou cansado de tudo isso, às vezes minha vontade é engolir todos os comprimidos dos frascos e beber a garrafa de vodca em um só gole. Se fizesse isso quem sabe não dormisse em paz por alguns dias, ou talvez deixasse de vez este mundo que há muito tempo não me oferece nada de bom.

Antes eu era feliz, sou dono de uma micro empresa bem sucedida, vida financeira bem resolvida e casado com Maria, que eu julgava ser a melhor mulher do mundo, até descobrir que ela me traiu com Ricardo, aquele que eu considerava meu melhor amigo. Não nos divorciamos, a medida mais drástica que tomei foi dar uma surra naquele filho da mãe que eu julgava ser meu amigo. Ele não reagiu e nem adiantaria porque sou muito mais forte que ele. De qualquer forma a consequência dessa briga foi a mulher dele ficar sabendo da traição. Diferente de Maria ela não saiu de casa, mas no prédio onde eles moram dizem que depois da surra que o marido levou ela troca mais de amante do que de calcinha.

A traição de Maria só foi descoberta porque eles deram muito azar. Aquele safado que se dizia meu amigo além de traidor é muito burro, levou Maria para um hotel no centro da cidade que era muito frequentado por garotas de programa como se ela fosse uma rameira qualquer. Mal tinham entrado no hotel quando a polícia foi verificar uma denúncia da presença de garotas menores de idade. Não houve nenhum registro policial deles no hotel, mas o investigador de polícia que acompanhava o caso é meu amigo e ao reconhecer Maria disse a ela que eu ficaria sabendo do fato. Antes mesmo que ele me contasse sobre a traição, Maria confessou o que tinha feito, disse que se sentia suja, envergonhada e não digna do amor que eu sempre dediquei a ela. Falou que não sabia o que deu na sua cabeça, que Ricardo já a vinha assediando há muito tempo com elogios e outros mimos. Aos prantos disse que não esperava o meu perdão, mas queria que eu soubesse que aquela foi a primeira e ultima vez que saiu com outro homem e que na verdade nada houve porque a polícia chegou instantes depois de eles entrarem no quarto.

Após a confissão Maria fez suas malas e foi viver no nosso apartamento no Litoral e eu fiquei no outro apartamento na capital.

Nunca mais nos falamos, nunca formalizamos a divisão dos bens, a única coisa que aconteceu foi ela me enviar um e-mail dizendo que ela pagaria as despesas de condomínio, energia elétrica e IPTU do imóvel, disse também que o apartamento seria bem cuidado e que jamais levaria outro homem para dentro de uma casa que um dia também já foi minha.

Tenho que admitir que Maria é uma mulher incrível e antes da traição eu era totalmente apaixonado por ela. Ainda sinto sua falta, mas a traição dela foi imperdoável. Será que a traição foi mesmo imperdoável? No meu estado emocional atual às vezes fico meio confuso.

Através de amigos que tenho no litoral soube que Maria emagreceu muito, se tornou uma mulher triste e só sai do apartamento para trabalhar, nem à praia vai, mesmo o prédio onde mora estar de frente para o mar.

Estou confuso, será que Brenda tinha razão? Será que realmente preciso tomar antidepressivos? Não sei. A única coisa que sei é que Brenda jogou mais uma pá de merda na minha vida que já estava toda cagada.

Quando Maria foi embora eu tentei não entrar em depressão, e para mim naquele momento me pareceu que frequentar um clube seria uma boa ideia. Um quarentão com porte atlético boa aparência como eu não fica por muito tempo sozinho dentro de um clube, e foi assim que conheci Brenda.

Brenda é uma mulher bonita, sexy, inteligente, culta e muito carinhosa, atributos mais que perfeitos para fisgar um trouxa como eu que se sentia carente.

Em menos de uma semana levei Brenda para a cama, e um mês depois ela estava vivendo comigo.

Durante os primeiros dias tudo corria bem, mas depois de algum tempo a falta que eu sentia de Maria começou a cobrar seu preço. Às vezes eu acordava em plena madrugada e não conseguia mais dormir, ou então do nada brotava em mim uma tristeza tão intensa que parecia que alguém muito próximo havia morrido. Nunca enfartei, mas pelas histórias que ouço a dor que eu sentia no peito se assemelhava a dor de um enfarto.

Tentando me livrar de toda aquela angústia, resolvi voltar a acampar em meio às matas, pratica essa que eu tinha abandonado logo depois que me casei com Maria. Um final de semana por mês eu preparava minha mochila e  sozinho me embrenhava nas matas. Como sempre levava pouca coisa: latas de conserva e pão suficientes para três dias, repelente para insetos, alguns medicamentos para emergências, um facão e um plástico para montar uma barraca. Brenda não me acompanhava e eu nem queria companhia, minha intenção sempre foi ficar sozinho ouvindo apenas os sons da natureza. Por insistência de Brenda que achava que eu corria riscos estando sozinho nas matas, comprei de um amigo dela esse revólver que nas minhas mãos não deu um único tiro.

O acampamento na mata me trazia um pouco de conforto, mas no terceiro dia após a minha volta os sintomas de ansiedade voltavam com toda força.

Por sugestão de Brenda, eu que não ingeria bebidas alcoólicas comecei a tomar uma caipirinha de Vodca toda noite na tentativa de dormir melhor. Depois de uma semana desisti da bebida pois além de não melhorar meu sono ainda me dava uma tremenda dor de cabeça.

Um dia Brenda me sugeriu que eu fosse me consultar com uma amiga dela que é psicóloga, psiquiatra e psicoterapeuta. Hoje penso que aquela perua é mais louca que eu, pois já na primeira consulta me receitou antidepressivos de tarja preta.

Logo depois que comecei a tomar o antidepressivo comecei a ter uma acentuada deficiência de concentração e por esse motivo acabava esquecendo de compromissos importantes, assim Brenda começou a gerenciar alguns negócios meus. Só não dei a ela acesso total a minha carteira de ações de grandes empresas, porque julgava que aquele patrimônio também pertencia a Maria, e que algum dia teria que prestar contas a ela.

Outro efeito colateral do antidepressivo foi que aos poucos minha libido foi diminuindo, se no início tínhamos relações quase que diariamente, a frequência e o entusiasmo diminuíram a tal ponto que no último mês trepamos apenas uma vez, e mesmo assim eu não gozei.

Dizem que quando nos falta algo em casa podemos pedir emprestado ao vizinho, e foi isso que Brenda fez, pegou emprestado todos os homens das redondezas. Do porteiro ao síndico do prédio, do entregador de pizza ao dono do restaurante ninguém escapou das garras de Brenda, ela deu para todos eles. Fico surpreso como eu nunca percebi nada, ou enganava a mim mesmo fingindo que não percebia.

Brenda não sabia que eu tinha parado de tomar o antidepressivo na esperança de recuperar meu antigo apetite sexual.

Sem o antidepressivo meu raciocínio funcionava melhor e aos poucos percebi uma mudança de comportamento em Brenda. Primeiro sugeriu que eu eventualmente tomasse alguma bebida alcoólica, podia ser a vodca mesmo já que a garrafa estava pela metade. Quando questionei se não era perigoso beber vodca junto com antidepressivos ela disse que era tudo bobagem. Depois veio com uma conversa estranha sobre um homem cuja depressão atingiu um nível tão alto que ele cometeu suicido. Depois de uma pausa estratégica para dar a impressão que estava pensando, Brenda finalizou a conversa dizendo que talvez o suicídio tinhas sido para ele uma saída inteligente já que não se sentia em paz há muito tempo. O que Brenda estava querendo fazer, me induzir ao suicídio?

Quando desconfiei que Brenda estava me traindo fiz um levantamento da fatura do meu cartão de crédito e descobri várias compras que eu não tinha conhecimento, quase todas em lojas especializadas em vestuário masculino. Quer dizer que além de chifrudo eu estava financiando os amantes dela? Tirei também um extrato da minha conta corrente nos últimos dois meses e constatei algumas transferências que eu desconhecia para contas em outros bancos.

Eu precisava tomar uma medida drástica, mas não queria cometer o mesmo erro que cometi com Maria tomando uma decisão precipitada, e que me arrependeria depois.

A primeira lição que tive quando resolvi praticar artes marciais foi que eu deveria usar a força do inimigo contra ele mesmo, mas contra ela além da força eu usaria também suas fraquezas. Se eu quisesse descobrir algo teria que “dopar” a Brenda e vascular nas suas coisas.

Uma das fraquezas de Brenda era que ela era uma pessoa bem previsível. Como não tínhamos o hábito de jantar, toda noite ela pegava um copo com suco de laranjas, um pacote com salgadinhos e sentava diante da TV para assistir alguma série.

No dia que resolvi agir, enquanto Brenda tomava banho dissolvi três dos comprimidos que eu usava para dormir no suco de laranja que estava na geladeira. Pela quantidade de suco que ela costumava beber provavelmente a dose que tomaria seria o equivalente a dois comprimidos, o suficiente para ela dormir em sono profundo a noite inteira. Menos de dez minutos depois do início do episódio, Brenda deitou no sofá e em instantes estava dormindo.

Outra previsibilidade de Brenda era com relação a senhas, ela usava sempre seu aniversário como senha para quase tudo, e assim não me foi difícil acessar tudo o que tinha no seu mobile, e o que vi me deixou realmente emputecido. Era todo tipo de mensagem trocada com alguns de seus amantes nos últimos meses, sendo que uma delas fazia referências diretas a mim e sobre algo que estavam planejando:” tenho que agir rápido, parece que ele já suspeita de algo e logo descobrirá toda verdade.” Pluguei o telefone no meu notebook, fiz backup das conversas e copiei todas as fotos, com o tempo verificaria se tinha alguma interessante.

Terminada a verificação do mobile, o segundo passo era vasculhar a sua bolsa, e mais surpresas, alguns preservativos, lubrificantes para a prática de sodomia e um par de algemas revestidos com veludo cor de rosa. Em um zíper lateral da bolsa encontrei quatro cartões de bancos diferentes, ali estava a explicação para as transferências de dinheiro da minha conta, mas o que mais me deixou assustado foi uma apólice de seguro de vida tendo Brenda como única beneficiária.

Eu estava sendo traído e roubado, estavam planejando a minha morte para ficarem com a grana do seguro de vida. Tudo estava planejado aguardando apenas uma ocasião oportuna.

Brenda continuava dormindo em sono profundo, olho para ela, tão linda e perigosa quanto uma Nadja. A vontade que eu tive foi de esganá-la ou então pegar o revólver e meter uma bala na sua cabeça, mas não faria isso, principalmente dentro daquela casa que também era de Maria.

Maria, como estaria ela naquela noite? Ela me prometeu que jamais levaria um home para dentro da casa que um dia foi minha, e eu não tive a mesma força, trepei feito louco na mesma cama que um dia foi dela.

Não dormi a noite inteira, pela internet cancelei os cartões da minha conta corrente que estavam em nome dela, retirei do seu chaveiro as chaves do apartamento e da portaria do prédio, de sua carteira retirei os mesmos cartões que cancelei, apaguei do seu mobile o aplicativo do banco e as senhas salvas.

Já era madrugada quando terminei de colocar dentro do carro dela todas as suas roupas e objetos pessoais deixando no apartamento apenas uma muda de roupas para ela se vestir antes de sair já que estava dormindo de pijama.

Quando Brenda acordou mandei que se vestisse e desse o fora da minha casa. Brenda chorou, pediu perdão, implorou, mas como não cedi mostrou sua verdadeira face me ofendendo com os mais variados palavrões. Com uma serenidade que eu julgava não ter disse a ela que tinha provas que ela estava me roubando há mais de um ano, que eu não a denunciaria se ela saísse naquele momento e não mais me causasse problemas. Brenda virou as costas e saiu.

O mundo dá muitas voltas, uma semana depois da partida de Brenda e quando comecei o planejamento do que faria neste dia, descobri que ironicamente Brenda estava vivendo em um apartamento de sua mãe localizado no litoral, a dois quilômetros do apartamento onde agora Maria vivia.

Dou um telefonema para Maria, eu precisava falar com ela, conversamos por cerca de meia hora e ao desligar tive a certeza que do outro lado da linha Maria chorava. Após o telefonema consulto novamente o relógio, preparado ou não era hora de agir. Me visto com roupas pretas, coloco tudo que está sobre a mesa dentro de uma sacola de papel e parto com o propósito de acabar de vez com aquela angústia.

A pequena viagem até o litoral levaria cerca de uma hora. Tudo estava planejado, mas a balança do destino insistia em pender para o lado errado. Eu tinha que ser forte para fazer o que deveria ser feito e como havia planejado.

Dentro daquela sacola de papel estava tudo o que simbolizava o mal que Brenda me causou, os comprimidos a bebida e o revolver.

Mesmo sendo um local ermo e perigoso, para não despertar suspeitas estaciono o carro em um local normalmente usado por pescadores. Abro os frascos e deixo os comprimidos soltos dentro da sacola de papel, abro a garrafa de vodca deixando a tampa também solta dentro da sacola, coloco o revólver na cintura preso entre a calça e meu corpo, saio do carro e caminho em direção à ponte que cruza o mar pequeno. Do local onde estou até a cabeceira da ponte são cerca de duzentos metros, e da cabeceira até seu ponto mais alto, mais quinhentos metros. Naquela hora de uma madruga de inverno são pouquíssimos os veículos que trafegam pela ponte, principalmente no sentido capital/litoral, logo a probabilidade de algum veículo parar do meu lado e tentar me impedir de fazer o que deve ser feito é quase nula. Respiro fundo, olho para ambos os lados; aguardo a passagem do único veiculo que surgiu na cabeceira da ponte; seguro o cabo do revólver sentindo sua rigidez e seu peso; comprimo a boca do cano contra a minha têmpora. Ao longe vejo o farol de outro automóvel, tenho que agir rápido, dou uma sonora gargalhada diante da ideia ridícula de suicídio que Brenda tentou plantar na minha cabeça. Atiro o revólver no mar seguido da sacola com os comprimidos e a garrafa de vodca. Sinto-me aliviado, volto para o carro e sigo em direção ao apartamento onde Maria está me aguardando.