O que a pandemia não destruiu

 

Com idade de catorze anos Atena decidiu que quando concluísse o ensino médio ingressaria na faculdade de medicina. Pouca gente entendeu a raiz e a dimensão dessa decisão. Todos que a conheciam sabiam que ela era uma sonhadora inveterada que escrevia poesias, que frequentava galerias de artes e, acima de tudo, sabiam que ela que lia muito.

Atena era muito seletiva em suas leituras; detestava fantasia fantástica, ficção científica e histórias com super-heróis. Para ela, super-heróis eram os professores, os médicos, os policiais e todos aqueles que dedicam sua vida ao bem da humanidade. Atena também pensava que super-herói ou super-heroína eram aquelas pessoas humildes que morando na periferia ficavam horas dentro de um transporte coletivo abarrotado para chegarem aos seus locais de trabalho e defenderem o sustento de suas famílias.

Atena também era aficionada em séries de TV, mas não qualquer série, sua preferência sempre eram as séries sobre médicos, hospitais e outras que abordavam dramas pessoais ou familiares e, foi assistindo uma dessas séries, que provocou nela o desejo de estudar medicina. Episódio após episódio ela via famílias e pessoas lutando contra doenças desconhecidas e algumas delas consideradas incuráveis, via equipes médicas não medindo esforços para diagnosticar algumas doenças, via o impacto sobre toda a equipe quando perdiam algum paciente. O empurrãozinho final para ela se decidir pela faculdade de medicina, foi o drama de uma jovem médica de uma série que assistia ser diagnosticada com uma doença de transmissão hereditária, progressiva, incurável e incapacitante, a mesma doença que embora ainda assintomática sua mãe era portadora. Atena sabia que a possibilidade de ela mesma ter herdado essa doença da mãe era de cinquenta por cento, mas se recusava a fazer o teste para descobrir se era ou não portadora dessa anomalia genética. De que adiantaria? Ela se perguntava o tempo todo. Não havia tratamento preventivo para a doença, o que existia eram terapias para retardar ou minimizar os efeitos quando eles se manifestassem, logo não fazia sentido algum carregar aquele fardo por vinte, ou trinta anos ou até mais.

A decisão estava tomada, concluindo o segundo grau prestaria vestibular para a faculdade de medicina. Concluindo a faculdade de medicina talvez fizesse pós graduação para se tornar geneticista ou uma nova graduação em biomedicina.

Durante todo curso Atena se destacou pela facilidade com que aprendia as matérias e pela sua tenacidade quando os problemas se apresentavam.

Atena parecia incansável.  Mudou seus hábitos de leitura; agora além dos livros inerentes ao curso que estava fazendo, ela devorava livros de biomedicina e biogenética na certeza que o conhecimento nessas áreas seria fundamental para o seu futuro como médica e pesquisadora.   

 Depois de seis anos na faculdade, formou-se com louvor e decidiu por uma pós graduação para se tornar geneticista, depois pensaria em uma nova graduação em biomedicina. Seu sonho de buscar soluções para doenças até então consideradas incuráveis continuava tão vivo quanto era quando ela terminou o ensino fundamental.  

O que Atena não contava era que logo depois da sua formatura a humanidade teria que enfrentar a maior pandemia dos últimos cem anos, a COVID 19, uma doença que surgiu na China no final do ano de dois mil e dezenove e se espalhou pelo mundo em uma velocidade jamais vista.

Os noticiários não falavam em outra coisa e para piorar confundiam a cabeça da população ao preferir usar palavras estrangeiras em detrimento do nosso próprio idioma. A mídia falava em Lockdown quando poderia dizer confinamento, falava em Fake News, mas depois tinham que explicar que esse termo significava notícias falsas e os médicos afirmavam uma coisa e algumas autoridades outras deixando o povo completamente desorientado.

Em meio a tanta informação e algumas vezes desinformação Atena viu em um noticiário que sua cidade natal se preparava para abrir um hospital de campanha, mas estavam tendo dificuldades na contratação de médicos. Atena não queria se afastar de sua mãe que já apresentava sintomas de sua doença, mas ao mesmo tempo se via na obrigação de honrar o juramento hipocrático feito na cerimônia de colação de grau, então achou melhor ouvir a opinião dos seus pais e o que ouviu de sua mãe determinou o rumo que daria na sua vida: ”Filha, não desista dos seus sonhos por nada nesse mundo. A progressão da minha doença pode demorar dez a vinte anos. Tenho certeza que essa pandemia vai acabar bem antes disso e eu estarei aqui esperando o seu regresso.”

Se conseguir um emprego no hospital de campanha foi mais fácil do que ela esperava, o mesmo não podia dizer com relação a moradia. Os hotéis e pousadas da cidade estavam fechados por causa da pandemia, muitas imobiliárias se recusavam alugar apartamentos para profissionais da saúde com medo que eles contaminassem todos no edifício. Restavam as casas, mas eram mais caras e distantes do hospital. Depois de muito procurar Atena conseguiu alugar uma edícula com entrada independente, não era muito próxima ao hospital, mas era bastante segura, já que estava nos fundos da casa ocupada pelos proprietários.

Se Atena pudesse definir seus primeiros dias no hospital em uma palavra, essa palavra seria medo. Medo de contrair a doença, medo de cometer erros e medo de não ser bem aceita pelos profissionais experientes. Seus medos se dissiparam naquela tarde quando foi internada uma senhora com idade de setenta anos. Enquanto ela fazia alguns exames preliminares na senhora, o médico chefe da equipe entrou no quarto, pegou o prontuário e disse à paciente: “Pode ficar tranquila dona Clotilde, a senhora está em boas mãos, a doutora Atena é competente e vai cuidar muito bem da senhora.” Ao que a senhora respondeu: “Mas quem disse que eu não estou tranquila? Já passei por tanta coisa na minha vida que não vai ser esse tal de corona que vai me derrubar. Tenho certeza que essa jovem médica vai me tratar muito bem, isso está escrito na carinha de anjo que ela tem”. A confiança do médico e da paciente nela agiu em Atena como um verdadeiro antídoto para seu medo e insegurança.

Montado no ginásio esportivo da cidade, o hospital de campanha contava com oitenta leitos que aos poucos foram sendo ocupados por pacientes com COVID 19, a maioria pessoas humildes e do grupo da terceira idade; pessoas acostumadas ao convívio familiar e que agora se viam isoladas sem nem ao menos poderem se comunicar por telefone celular.

Filha de uma família da classe A, de repente Atena se viu frente a frente a um mundo que até então ela não conhecia, eram famílias inteiras que para sobreviver dependiam da aposentadoria de uma pessoa idosa que agora estava internada. E se essa pessoa morresse, o que seria dessa família? Soube de uma mãe de família que fugiu do hospital antes da alta porque temia pela vida dos seus filhos sendo cuidados por um pai alcoólatra inveterado. Viu famílias que não sabiam se festejavam a alta do chefe da casa ou choravam pela morte do avô ocorrida no mesmo dia.

Como tudo em sua vida, Atena se entregou de corpo e alma ao seu trabalho, durante seu turno de trabalho dava a impressão que estava em vários locais ao mesmo tempo.

Por iniciativa própria, Atena levou seu tablet ao hospital e, com autorização do diretor da unidade, após seu turno de trabalho ia até o leito de alguns pacientes para que eles se comunicassem com seus familiares por vídeochamada. Cada chamada levava menos de dez minutos, permitindo assim que durante as duas horas que Atena permanecia no hospital após o seu turno aproximadamente dez pacientes se comunicassem com seus familiares. Era impressionante notar a mudança no humor dessas pessoas após cada ligação. Como ficava ao lado dessas pessoas durante as ligações, Atena percebeu a brutal diferença entre o mundo delas e o seu. No seu mundo as pessoas tinham posses para comprar quase tudo o que desejavam, logo não havia necessidade ou oportunidade de compartilharem quase nada com ninguém. No mundo daquelas pessoas humildes ela testemunhou a constante preocupação de uns com os outros. Percebeu que naquele mundo era frequente alguém partilhar o pouco que tinha para amenizar o sofrimento de alguém próximo.

Por mais que tentemos burlar as regras básicas da vida, não conseguimos mudar o fato que o dia só tem vinte e quatro horas, e que essas horas devem ser divididas da maneira mais inteligente possível entre todas as nossas atividades. Na vida agitada que Atena vivia essa divisão não estava sendo bem feita e se ela não se cuidasse poderia pagar caro por isso. Outra coisa que Atena não estava levando em conta era que diferente dos aparelhos eletrônicos onde basta ligar a tomada para que as baterias se recarreguem, nosso organismo depende de vários fatores como alimentação, repouso e até lazer para manter a energia em níveis satisfatórios e Atena vinha negligenciando todos eles. Quando chegava em casa depois do seu turno de trabalho ela se sentia tão esgotada física e emocionalmente que não tinha ânimo nem para preparar uma refeição saudável e, assim, estava vivendo de Fast Food. Quando saia do hospital passava em uma lanchonete que atendia pelo sistema de Drive thru; pegava um lanche qualquer e ia para casa onde após comer o lanche e cuidar da higiene pessoal telefonava para sua mãe e depois caia na cama para só levantar na hora de retornar ao hospital. Na sua única folga semanal tinha que fazer a faxina na sua casa, lavar e passar suas roupas já que temia trazer alguém contaminado para dentro da sua casa para fazer esses serviços. Não tinha mais tempo para leitura, diversão e nem ao menos se comunicava com as amigas pelas redes sociais.

Talvez porque ela nunca tinha diminuído o ritmo e nem a disposição com que atendia os pacientes. No hospital ninguém notava ou se notavam ninguém nunca lhe disse nada, mas Atena estava emagrecendo a olhos vistos.

Mesmo com tantos afazeres, ela concordou e o hospital permitiu que Atena participasse de uma entrevista por vídeochamada para a emissora de TV local que estava fazendo uma série de entrevistas sobre os jovens médicos que atuavam no combate ao Coronavírus. Nessa entrevista ela falou de tudo um pouco, falou do seu sonho de se tornar geneticista e talvez biomédica para buscar soluções para doenças incuráveis como a que acometia sua mãe e que havia cinquenta por cento de possibilidade de ela própria ter herdado a doença da mãe. Falou sobre sua decepção com grande parte da população que enquanto eles, profissionais de saúde estavam dando tudo de si no combate a pa ndemia, uma significativa parte do povo sabotava seus esforços participando de festas com aglomerações de centenas de pessoas ou lotando as praias em todos os finais de semana.

Atena já estava trabalhando no hospital há seis meses quando naquela manhã levantou indisposta, parecia que toda a energia do seu corpo havia sido sugada durante a noite. Além do cansaço e apesar do calor que fazia, ela sentia frio e ao aferir a temperatura constatou que ela estava em quase trinta e nove graus, indicando um quadro febril. Atena sabia exatamente o que esses sintomas indicavam, então ligou para o hospital avisando seu superior que iria se consultar em uma clínica já que o hospital de campanha não fazia testes de detecção da doença.

Quando o teste rápido realizado pela clínica deu positivo para o COVID, o médico que a atendeu, além de prescrever alguns medicamentos para combater os sintomas da doença, receitou um polivitamínico, já que ela apresentava sinais de desnutrição e anemia; pediu uma série de exames e recomendou bastante repouso até que em três dias pudesse fazer o teste RT-PCR que confirmaria se realmente ela tinha sido infectada.

E a doença foi evoluindo, quando depois de três dias ela retornou à clínica para realizar o teste RT-PCR, estava com tosse seca e se sentia muito cansada.

Quando o exame confirmou que ela tinha sido infectada, o que já era evidente pelos seus sintomas, Atena decidiu monitorar mais de perto a evolução da doença, adquirindo um oxímetro. Em momento algum cogitou em voltar para a casa dos seus pais para não os contaminar.

Talvez por alguma predisposição desconhecida, ou pelo seu estado anêmico a doença evoluiu rapidamente forçando sua internação no mesmo hospital onde ela vinha trabalhando há seis meses.

Com a evolução da doença veio a perda do paladar e do olfato, seguida de dores de garganta e depois pelo corpo todo.

Pouco antes de ser entubada, Atena reclamou ao médico que a atendia que estava sentindo uma enorme dor no peito e tanta falta de ar que parecia que nem tinha mais pulmões.

Quando depois de dez dias entubada e em coma induzido ela acordou, a sensação era que estava no meio de um terrível pesadelo que não permitia que ela ficasse totalmente desperta. Sentia-se fraca, dolorida, com dificuldade para respirar e com o raciocínio confuso.

A recuperação foi lenta e gradual, foram necessários mais dez dias de internação para que ela tivesse alta e ainda assim com a recomendação de pelo menos mais trinta dias de repouso em casa antes de voltar às atividades.

Na saída do hospital seu pai a aguardava para levá-la de volta para casa onde ficaria confinada em seu quarto por mais catorze dias. Emocionada recebeu homenagens de seus colegas de trabalho e de alguns ex-pacientes, inclusive dona Clotilde a simpática velhinha que sabendo pela mídia de sua alta veio também homenageá-la.

A mesma repórter que a entrevistara tempos atrás perguntou se ela ainda voltaria para aquele hospital. “Provavelmente não, até porque quando eu estiver totalmente recuperada este hospital de campanha estará sendo desativado”. Depois, a repórter quis saber quais eram os planos dela para o futuro já que a COVID 19 tinha sequestrado um ano da sua vida. “Não posso dizer que a Covid tenha roubado um ano da minha vida, porque aprendi muito durante esse período. Meus planos para o futuro continuam os mesmos, me tornar uma geneticista e buscar soluções para doenças até então consideradas incuráveis. Esse ano me mostrou que essa pandemia pode destruir a saúde, a economia e tantas outras coisas, mas se eu não permitir, ela jamais destruirá meus sonhos e minha fé em um mundo melhor.