Vivemos em uma sociedade que tem medo de encarar a própria realidade, uma sociedade que, ao invés de confrontar a brutalidade de suas ações, prefere se esconder atrás de palavras sofisticadas, muitas vezes em inglês, como se uma mudança de idioma pudesse suavizar ou até absolver seus atos mais abomináveis. O uso desses termos importados não é apenas uma questão de moda linguística, é uma estratégia de mascaramento, um artifício que pretende diluir a responsabilidade e reduzir o impacto moral daquilo que, em sua essência, deveria nos horrorizar.
Um exemplo claro desse fenômeno é o termo "bullying".
A palavra é amplamente utilizada para descrever algo que, em sua realidade mais
crua, é agressão física, psicológica e emocional. Bullying dá
a sensação de ser algo mais leve, mais controlável. Ao invés de chamarmos isso
pelo que é – abuso, violência – recorremos a esse termo em inglês, que parece
diluir o impacto emocional. "Ah, é só bullying", dizem muitos, como
se fosse um rito de passagem para as crianças e adolescentes, um mal necessário
da convivência social. Mas o bullying é uma violência que destrói, que
marca para sempre. Quantos jovens têm suas almas dilaceradas dia após dia
nas escolas, nos espaços de convivência, nas redes sociais? Quantos terminam
suas próprias vidas porque não conseguem suportar o peso dessa agressão
contínua? Chamar de bullying, ao invés de expor a crueldade que realmente é,
desumaniza a dor e permite que a sociedade siga seu curso sem se
responsabilizar de fato.
E esse não é o único termo. Somos uma sociedade que agora
vive imersa no conceito de "fake news", uma expressão que,
quando pronunciada, parece quase inofensiva. "Fake news" soa
como uma brincadeira, como algo passageiro, algo que não traz consequências.
Mas por trás dessa expressão, o que se esconde é uma indústria de mentiras, de
manipulação, de desinformação que destrói vidas, arruína democracias e semeia o
ódio entre as pessoas. Em um mundo onde a verdade está cada vez mais
fragmentada, onde os fatos se tornaram commodities e a realidade um campo de
disputa, "fake news" deveria ser chamada pelo seu nome
verdadeiro: mentira. Propaganda nociva. Desinformação
intencional. Mas ao mascarar isso com um termo estrangeiro, as
consequências parecem menos graves. Mentir agora se tornou uma questão de
estratégia, não de moralidade.
E o que dizer de termos como "deep fake"?
Um conceito que assombra nosso presente e ameaça nosso futuro. As imagens e
vídeos que vemos, que sempre foram a fonte mais confiável de verdade, agora
podem ser distorcidos, manipulados, criados do nada. O deep fake pode
transformar qualquer um de nós em protagonistas de ações que nunca cometemos.
Pode destruir reputações, gerar caos, fabricar provas. Mas o termo, mais uma
vez, suaviza a realidade. "Deep fake" soa quase como uma
inovação tecnológica impressionante, quando na verdade, é uma ferramenta
perigosa que, se não for controlada, poderá aniquilar o conceito de verdade em
si. Ao invés de chamarmos isso de falsificação grave, de manipulação fraudulenta,
o termo técnico em inglês faz parecer que estamos lidando com um jogo
tecnológico.
E é assim que a sociedade contemporânea opera. A
violência é embalada com palavras glamorosas. A crueldade é suavizada com
termos técnicos. A agressão é diluída em eufemismos. Falamos de
"downsizing" para esconder as demissões em massa, de "collateral
damage" para suavizar a morte de civis inocentes em guerras, de "enhanced
interrogation" para disfarçar o que é tortura. A própria palavra
"bullying" já não carrega a carga emocional que deveria. É
como se a língua inglesa, com sua suposta neutralidade, pudesse nos proteger da
brutalidade das ações humanas.
No entanto, essa estratégia de mascaramento não nos torna
menos culpados. Pelo contrário, nos torna mais covardes. Preferimos fingir que
não vemos, que não ouvimos, que não compreendemos o sofrimento alheio. Ao não
nomearmos o mal pelo que ele realmente é, nos desresponsabilizamos, nos
tornamos cúmplices.
Quando um adolescente tira a própria vida porque não
consegue mais lidar com a dor de ser humilhado todos os dias, isso não é apenas
"bullying", é violência psicológica, social e
emocional. Quando um político manipula a opinião pública com "fake
news", ele não está apenas brincando com a verdade, ele está distorcendo
a realidade para seu próprio benefício, prejudicando milhões de pessoas.
Quando vemos "deep fakes" usados para incriminar inocentes,
isso não é apenas um truque de computador, é a dissolução da confiança que
temos naquilo que vemos e ouvimos.
Ao aceitar esses termos sem questionar, estamos aceitando a
diluição da gravidade. Estamos, de maneira sutil e perigosa, aceitando o
inaceitável. E esse é o maior risco.
Talvez seja hora de pararmos de nos esconder atrás dessas
palavras importadas e começarmos a nomear as coisas pelo que realmente são.
Porque enquanto continuarmos a chamar a brutalidade de "bullying",
a mentira de "fake news" e a manipulação de "deep fake",
estaremos, de certa forma, permitindo que tudo isso continue.