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segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O Garoto dos jornais - Conto

dezembro 21, 2020

 


Já era quase hora do almoço quando Rubinho vendeu seu último jornal. Como todos os dias tinha saído de casa junto com sua mãe as seis horas da manhã, caminhado por quase uma hora até o distribuidor onde comprava os jornais. Depois de comprar os jornais, Rubinho ainda tinha caminhado mais dez minutos até a praça onde colocou seus jornais sobre um caixote para os vender. Com todos jornais vendidos só restava ir até o bar do Seo Joaquim para guardar seu caixote, e depois caminhar de volta para sua casa.

Com a idade de dez anos Rubinho não tinha infância, pela manhã vendia jornais, a tarde ia para a escola., saindo da escola fazia seus deveres escolares e dormia cedo já que no dia seguinte tinha que levantar as cinco horas da manhã.

A mãe de Rubinho não queria que o filho perdesse a infância vendendo jornais, mas ela própria tinha que trabalhar duro para pagar o aluguel e sustentar a ambos, logo não tinha muito tempo para exercer seu papel de mãe, e assim preferia ver o filho vendendo jornais do que aprendendo o que não devia com a molecada do bairro. Outra preocupação da mãe de Rubinho eram os sequestros de crianças que vinham ocorrendo nos bairros da periferia. O esquema era sempre o mesmo, uma pessoa, normalmente uma mulher fazia amizade e ganhava a confiança da criança. Depois a levava à um lugar qualquer onde a criança era colocada dentro de um automóvel que desaparecia levando a criança. A polícia suspeitava que esses sequestros eram feitos pelos membros de uma quadrilha desbaratada um ano antes que conseguiram escapar para a Europa. Uma das características dessa quadrilha era que antes do sequestro tinham coletado amostra de cabelos de todas as crianças para traçar um perfil genético. Na ocasião houveram relatos que mães solteiras também haviam desaparecido junto com seus filhos.

Rubinho tinha seus sonhos. Certa vez assistindo um filme na TV viu um médico que ajudava muita gente e perguntou para sua mãe o que precisava para ser médico. Sua mãe respondeu que precisava estudar muito anos em uma faculdade, então Rubinho decidiu que queria ser médico. Desde então Rubinho guardava tudo o que ganhava vendendo jornais para pagar a faculdade. Sua mãe achou graça da ingenuidade do filho, mas mesmo assim decidiu apoiar a sua ideia, abriu para ele uma caderneta de poupança onde depositava todo dinheiro que ele lhe entregava, e mais um pouco quando conseguia economizar.

Logo que saiu do bar do Seu Joaquim um rapaz o abordou dizendo:

—Ei garoto dos jornais, aquela senhora sentada no banco lá na praça não me parece bem, por que não dá um pulo lá ver se ela precisa de algo?

—Tenho que ir para casa senão perco a hora da escola—, respondeu Rubinho. —Por que o senhor não vai até lá.

—Tenho que correr até a porta da escolinha pegar meu filho, ele não pode ficar lá além do horário.

—Rubinho achou estranha aquela conversa, mas mesmo assim foi até a praça, parou ao lado da senhora dizendo:

—Vovó, a senhora não está se sentindo bem? 

—Acho que você nem sabe o que é, mas estou tendo uma crise de labirintite e estou com medo de atravessar a rua para voltar para minha casa.

—Eu posso dar a mão para a senhor e ver se está vindo algum carro.

—Você é um anjo. Por favor me ajude a levantar. Meu nome é Clotilde, e qual o teu?

—O meu é Rubens, mas pode me chamar de Rubinho.

—Rubinho? O mesmo nome do meu filho.

Quando chegou na porta da casa Dona Clotilde convidou Rubinho a entrar e tomar um suco.

—Não posso Vovó, tenho que caminhar por uma hora até chegar em casa em tempo de ir para a escola.

—Vai a pé? Por que não pega um Ônibus?

—Porque se eu for de ônibus vou gastar metade do que ganhei vendendo jornais.

—Entre Rubinho, eu te dou o dinheiro do ônibus, mas por que está me chamando de vovó?

—É que além da minha mãe não tenho mais ninguém, nem pai, nem avós, nem irmãos ou primos. Minha mãe me ensinou a chamar as pessoas bem mais velhas de vovô e vovó.

—Bom, se você não tem avós se quiser posso ser tua avó postiça.

Quando entrou na sala Rubinho viu na estante um porta-retrato e perguntou:

—A senhora conhece esse moço? Foi ele que me pediu para ajudá-la.

Parecendo surpresa Dona Clotilde disse:

—É filho de uma grande amiga. Tem certeza que foi ele mesmo?

—Tenho sim vovó, ele me pareceu bem legal.

—Você disse que não tem pai. O que aconteceu com ele?

—Ele morreu antes de eu nascer.

—E seus avós?

—Minha mãe disse que todos já morreram, e ela não tem irmãos, tios e nem primos.

—Por que você vem de tão longe vender jornais?

—Onde eu moro ninguém lê jornal, e eu quero juntar dinheiro para quando for grande estudar em uma faculdade.

Dona Clotilde deu a Rubinho um copo de suco de laranja e alguns biscoitos, depois conversaram mais um pouco e ela lhe deu o dinheiro do ônibus para ele ir embora, e também para vir no dia seguinte.

—Sou uma velha doente e solitária, venha amanhã de novo para a gente conversar um pouco mais.

A noite na sua casa a Mãe de Rubinho ficou preocupada. Quem era aquela velhota e por que estava agradando seu filho?

—Rubinho. Gostaria de conhecer tua mãe, se você me der o endereço qualquer dia desses vou na tua casa. —Disse Dona Clotilde quando Rubinho a visitou no dia seguinte.

—Só se for no domingo à tarde. Minha mãe trabalha todos os dias, sábado faz faxina na casa e domingo pela manhã vamos na missa.

— Então pergunte a sua mãe se posso visita-la no domingo à tarde.

—Vovó, esse filho da sua amiga mora aqui por perto?

Mais uma vez dono Clotilde pareceu surpresa com a pergunta.

—Por que está me perguntando isso, ele está te incomodando?

—Não vovó, é que algumas vezes já vi ele parado na porta da sua casa, em outras em pé lá na praça e parece que está sempre olhando para mim.

—Não se preocupe com isso, tenho a certeza que ele não quer te fazer nenhum mal.

—A senhora tem carro vovó?

—Não. Por que pergunta?

—Por que na sua casa tem garagem.

Dona Clotilde riu e disse: —Ali na frente não é uma garagem, ali tinha uma loja de vender bolos, mas a Dona mudou para outro estado e eu resolvi não alugar a loja por enquanto.

—Puxa, que legal! Minha mãe também faz bolos e doces, ela trabalha há muito tempo em uma confeitaria.

—Mais uma vez Dona Clotilde riu enquanto dizia: Ali na loja tem cozinha, quem sabe eu não alugue para tua mãe fazer e vender seus bolos?

—E aí eu vou poder para de vender jornais.

—Você não gosta de vender jornais?

—Até que não é muito ruim, mas tenho que levantar muito cedo e por aqui ninguém me chama pelo nome, só me conhecem como o garoto dos jornais.

 E assim, dia a dia Dona Clotilde ganhava o amor e a confiança de Rubinho.

Conforme combinado, na tarde do domingo Dona Clotilde foi à casa de Rubinho.

—Boa tarde, a senhora é a mãe do Rubinho? Não sei seu nome porque ele só a chama de mãe.

—Boa tarde, a senhora deve ser Dona Clotilde, sou Ester, mãe do Rubinho. Entre por favor.

De imediato houve uma empatia entre as duas, em poucos minutos já conversavam como se fossem velhas amigas.

—Gosto muito do seu filho, ele é muito bom e educado, só fico intrigada que ele só tenha a senhora como família.

Sentindo-se meio que constrangida por não poder falar a respeito do assunto na frente do filho, Ester disse:

—A senhora gosta de chá com bolo?

—Adoro.

—Então vamos para a cozinha—, disse Ester, e chamando o filho completou. —Rubinho, vá até o armazém da esquina e compre um quilo de açúcar. Peça para o seu Maneco colocar na minha conta.

—Matando sua curiosidade sobre minha família—, disse Ester— na verdade eu tenho pais e um irmão, só que moram em outro bairro distante daqui. Rompi o relacionamento com minha família quando fiquei grávida do Rubinho.

—Importa-se em falar a respeito?

—Hoje já não me importo com mais nada, só não quero que meu filho saiba a verdade antes da hora.

—Se quiser se abrir comigo, talvez faça bem para a senhora.

—Minha história é curta, não tem muitos detalhes. Na ocasião eu tinha apenas dezoito anos, morava longe daqui e tinha acabado de entrar na faculdade. Uma colega de classe promoveu uma grande festa para os calouros, e lá conheci o Rubens, pai do Rubinho. Ele era dois anos mais velho que eu e começamos namorar ainda naquela noite. Já estávamos com dois meses de namoro quando transamos pela primeira vez, e no fogo da paixão esquecemos completamente de usar preservativo. Eu amava o Rubens, era minha primeira vez, quem ia se lembrar de preservativo. Na segunda vez que fizemos amor usamos preservativo, mas o estrago já tinha sido feito. Quando minha menstruação já estava atrasada dez dias, comprei na farmácia um teste de gravidez, e fiquei horrorizada ao descobrir que estava grávida. Sabia que meu pai ia ficar uma fera, contei ao Rubens e juntos decidimos que, meu pai aceitando ou não eu teria a criança. Nesse dia o Rubens disse que falaria com a mãe dele que com certeza nos apoiaria. Foi a última vez que o vi.

—O que aconteceu?

—Não sei. No dia seguinte ele não deu notícias, quando tentei ligar o telefone dava desligado ou fora de área.

—Não tentou localizá-lo?

—Sei que fui irresponsável, não sabia o endereço dele, aliás, nem seu nome completo, ninguém dos meus amigos o conhecia, ele tinha ido naquela festa junto com outra pessoa que ninguém sabia quem era.

—E tua família como reagiu.

—Meu pai me deu uma surra tão violenta que fui parar no hospital, desde então nunca mais os vi. Saindo do hospital fui parar em um abrigo provisório patrocinado por uma ONG. Durante os nove meses de gravidez trabalhei na cozinha deles. Quando Rubinho Nasceu, uma vereadora me trouxe para esta casa, conseguiu um berçário para o Rubinho e eu fui trabalhar em uma grande confeitaria onde estou até hoje.

—Quer dizer que se você e teu filho desaparecerem ninguém da família vai procurar.

—Se nós desaparecermos creio que ninguém vai perceber.

—Você é uma mulher batalhadora, por isso teu filho parece tão responsável.

—O Rubinho fala muito da senhora.

—Espero que você não se importe de eu dar o dinheiro do ônibus só para ele poder ficar um pouco mais me fazendo companhia. Sou uma velha muito solitária.

No dia seguinte quando Rubinho visitou Dona Clotilde, perguntou a ela:

—Por que aquele moço filho da sua amiga fica me vigiando?

—Como assim te vigiando?

—Agora vejo ele em vários lugares, já o vi até perto da minha casa.

—Assim que o ver vou falar com ele. Quero te perguntar uma coisa Rubinho, tua mãe ou na escola examinam tua cabeça para ver se tem piolhos?

—Minha mãe vê as vezes, mas agora faz tempo que não olha.

—Posso dar uma olhada?

—Claro vovó.

Enquanto fingia que verificava se Rubinho estava com piolhos, sem que ele percebesse, ela pegou uma pequena tesoura e cortou um tufo dos seus cabelos. 

Quando Rubinho foi embora Dona Clotilde pensou “Se tudo der certo como eu espero, em breve a vida do Rubinho não será mais a mesma”.

Foram necessárias mais duas semanas até que o laboratório concluísse os testes requisitados por Dona Clotilde, e mais um mês para ela conseguir toda a documentação que precisava. Finalmente ela estava pronta para agir, mas seus planos ainda tinham que esperar mais alguns dias por causa de um imprevisto.

Naquela sexta feira Rubinho ainda não tinha vendido todos os jornais quando aquele mesmo rapaz que o vigiava há dias se aproximou dizendo:

—Dona Clotilde precisa de você com urgência, vá até a casa dela agora.

—Sem pensar duas vezes Rubinho pediu para a moça do trailer que vendia cachorro quente guardar seu caixote e os jornais restante e correu para casa de Dona Clotilde. Quando lá chegou Rubinho se assustou ao ver uma ambulância parada em frente.

Logo que entrou na casa, Rubinho viu dois enfermeiros colocando Dona Clotilde em cima de uma maca, e ela quase sem voz ainda conseguiu dizer:

—Rubinho, pegue uma chave que tem naquela gaveta, depois que eles me levarem desligue o gás, apague as luzes, tranque a casa  e volte para tua casa. Quero também te pedir que venha a cada três dias regar minha planta. Você também precisa fazer uma coisa muito importante, pegue... E antes que ela concluísse a frase foi acometida por uma forte tosse que lhe tirou o fôlego, obrigando os socorristas a colocarem nela uma máscara de oxigênio e a levarem imediatamente para a ambulância.

Rubinho estava confuso, mesmo assim fez o que ela pediu, desligou o gás, apagou as luzes, trancou a casa e foi embora. Quando chegou em casa e narrou a sua mãe o ocorrido, Rubinho chorou sabendo que Dona Clotilde estava doente. Contou também para a mãe que ela queria dizer mais alguma coisa, mas não conseguiu porque começou a tossir muito e foi levada para a ambulância.

Quando retornou na segunda feira para regar a planta da Dona Clotilde, Rubinho se surpreendeu ao vê-la sentada na poltrona do canto da sala tendo ao seu lado o mesmo rapaz que o vinha vigiando há dias. 

—Vovó. A senhora já voltou—, disse Rubinho caminhando em direção a ela com os braços abertos, e se surpreendeu quando ela quase gritando levantou a mão dizendo:

—Pare aí mesmo, não se aproxime. Os médicos me proibiram de chegar perto de alguém além da pessoa que está cuidando de mim.

—Tudo bem vovó, vou me sentar no sofá e a gente conversa um pouco, depois vou embora.

—Antes de ir para o hospital eu devia ter feito uma coisa, mas não deu tempo, e preciso que você faça isso agora.

—O que quer que eu faça vovó?

—Pegue na gaveta da estante uma caneta e um bloco de papel e escreva um bilhete que vou mandar para tua mãe. Na mesma gaveta tem um pouco de dinheiro, pegue tudo para poder pagar o taxi que vai te levar até a confeitaria onde tua mãe trabalha.

Rubinho pegou o papel e a caneta, ajoelhou no chão ao lado da mesinha de centro onde colocou o papel dizendo: — Pode ditar o bilhete Vovó.

“Ester. Não gostaria que as coisas fossem feitas desta forma, mas tive uma forte crise de uma doença que carrego há anos e fui parar no hospital antes que você soubesse toda verdade a meu respeito. Te peço que saia do trabalho agora e vá até minha casa. Eu não estarei lá, mas o Rubinho tem a chave e vocês podem entrar. Dei dinheiro para o Rubinho pegar um taxi, e se ele fez como pedi o taxi deve estar te esperando em frente a confeitaria.

Na porta debaixo da estante da sala tem uma maleta, e dentro dela uma carta que eu escrevi na manhã daquele mesmo dia em que fui internada. Tem também vários documentos e o telefone do meu advogado. Por favor, veja tudo com muita atenção pois teu futuro e o de Rubinho dependem daqueles documentos.  Um abraço – Clotilde.”

—Pronto vovó, está escrita.

—Agora, guarde esse bilhete no bolso, telefone para o ponto de taxi e peça para falar com o taxista Anderson, se ele não tiver lá peça para falar com o Antônio, os dois são de minha confiança. Vá de taxi até a confeitaria onde tua mãe trabalha, peça para o motorista te aguardar e entregue o bilhete para ela.

Quando Rubinho chegou de taxi na confeitaria e mostrou para a mãe o bilhete ela ficou muito nervosa dizendo que não podia abandonar o trabalho naquela hora, mas Rubinho insistiu tanto que a gerente da loja a dispensou pelo resto do dia.

Já no taxi Ester disse a Rubinho:

—Quero que você me explique isso direitinho. Porque me tirou do trabalho e quem vai pagar este taxi?

—Mãe. Lembra-se que eu falei que a vovó Clotilde estava internada?  Quando cheguei na casa dela hoje, ela estava sentada na poltrona e do lado dela estava aquele moço que lhe falei. Ela disse que não era para eu chegar perto dela e pediu para pegar uma caneta e escrever o bilhete. Pediu para pegar dinheiro na gaveta para pagar o taxi e até deu o nome dos motoristas de confiança dela.

Nesse momento o motorista do taxi comentou:

—O garoto tem razão, a dona Clotilde já tinha me falado dele e pediu que se ele precisasse usar meu taxi depois ela pagaria a corrida.

—O que essa mulher está querendo? — Comentou Ester mais para si mesma do que para os outros.

Quando chegou na casa de Dona Clotilde, Ester foi até a porta na estante pegou a maleta e a abriu, dentro dela haviam diversos documentos, algumas fotos e mais uma carta de Dona Clotilde.

“Ester. Queria que o que eu tenho a te dizer fosse dito em um clima de festa, mas hoje me senti muito mal, e depois de escrever esta carta e juntar todos os documentos vou chamar uma ambulância para me levar ao hospital. Eu já deveria ter sido internada há mais tempo, mas preferi esperar até ter certeza do que vou te falar.

Você acredita em espíritos se comunicando com os vivos? Porque se não acredita e melhor começar a acreditar.

Há onze anos eu tinha um filho, um jovem rapaz inteligente e muito amoroso. Um dia meu filho chegou em casa dizendo que tinha uma namorada que amava muito, e essa garota estava grávida. Ele sabia que os pais dela não aceitariam uma gravidez antes do casamento, então decidimos que nesse caso ela poderia vir morar na nossa casa. Naquela tarde meu filho decidiu trazer a namorada para que eu a conhecesse.   Quando meu filho foi buscar a garota, assim que pegou a estrada uma carreta desgovernada bateu no carro dele. Meu filho não sobreviveu ao acidente e desde aquela data procuro a garota que poderia estar carregando no seu ventre meu neto ou minha neta.

Quando o Rubinho entrou na minha casa pela primeira vez e viu a foto do meu filho na estante, disse que foi ele  quem pediu para que o Rubinho me ajudasse. Quase entrei em choque, mas decidi desvendar aquele mistério.

Fui até tua casa, ouvi tua história e a cada dia mais me convencia que meu filho era o pai do Rubinho. Sem que Rubinho percebesse, cortei um tufo dos seus cabelos e mandei fazer um teste de DNA onde ficou comprovado que teu filho é meu neto.

Estou indo para o hospital, não sei se vou sobreviver, nessa pasta estão todos os exames que comprovam que Rubinho é meu neto. Não tenho outros parentes, então na pasta tem também um testamento deixando tudo o que é meu para teu filho, ficando todos os bens sob tua guarda até ele atingir a maioridade. Junto com os documentos tem o cartão do meu advogado, caso eu não sobreviva telefone para ele tomar todas as providencias, inclusive a transferência de tudo que tenho no banco para você. Se eu morrer tome posse da casa imediatamente, porque se a documentação demorar muito a casa pode ser invadida ou delapidada. Daqui a pouco quando o Rubinho vir me ver vou entregar a ele essa maleta com os documentos e depois sigo para o hospital. Veja as fotos do meu filho. Não é o mesmo rapaz por quem você se apaixonou? Mostre as fotos para o Rubinho e ensine-o a chama-lo de pai.”

Ester estava chocada. Imediatamente telefonou para o hospital perguntando por Dona Clotilde, a atendente foi enfática.

—Graças a Deus que alguém está perguntando por ela! Na sexta feira essa paciente já chegou morta neste hospital. Há três dias estamos tentando sem sucesso descobrir algum familiar.

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sábado, 5 de dezembro de 2020

A calcinha branca - Conto

dezembro 05, 2020

 


Como acontecia todos os dias, ao levantar Mariana abre a cortina do seu quarto e olha para fora, o tempo estava bom logo poderia ir caminhando até seu trabalho. Eram três quilômetros de caminhada, ela preferia isso a ser encoxada em um ônibus lotado. Além de evitar o assédio sexual, suas caminhadas ainda ajudavam a manter sua boa forma e contribuíam para manter seu corpo com aquelas formas que causavam inveja em muitas garotas.

Pela janela Mariana percebe que no edifício ao lado alguém a espreita por traz da fina cortina, ela já tinha se acostumado a isso. Provavelmente aquela pessoa já a tenha visto de roupas íntimas ou talvez até mesmo nua  em algum momento de descuido, mas já fazia tanto tempo que percebeu ser observada sem que tivesse sido abordada na rua ou em qualquer outro lugar que concluiu tratar-se de um voyeur inofensivo que no máximo deveria se masturbar ante a visão do seu corpo.

Ela estava intrigada, no dia anterior recebera uma correspondência misteriosa, o envelope era cor de rosa e dentro havia uma calcinha preta com um cartão que dizia: “Eu seria a pessoas mais feliz do mundo no dia que pudesse te ver tirando lentamente esta calcinha.” Ao pegar o papel sentiu um perfume muito sutil, um aroma que ela reconhecia não se lembrava de onde. O envelope tinha como remetente o mesmo endereço dela e havia sido postado dois dias antes na agência central dos correios. A calcinha era tamanho G, logo a pessoa imaginava sua bunda um pouco maior do que realmente era.

Quem poderia ter enviado aquela correspondência? Teria sido o voyeur do prédio vizinho, ou talvez fosse o cara da oficina mecânica? No caminho até o trabalho quase sempre via as mesmas pessoas. Poderia ter sido qualquer uma delas. Aguardaria alguns dias e observaria para tentar descobri quem era o autor da mensagem. Caso a pessoa começasse a importuná-la procuraria a delegacia da mulher para registrar uma queixa.

Após o café da manhã Mariana vestiu como de costume uma calça legging colada ao corpo, um top e calçando um par de tênis iniciou sua caminhada com destino ao trabalho.

Como acontecia em todos os dias o pessoal da loja de automóveis estava na porta aguardando sua passagem só para ficarem olhando para sua bunda. Teria sido algum deles que enviou a calcinha para ela?  Algumas vezes tentou mudar de calçada, mas o resultado foi o pior possível, porque do outro lado da rua tinha uma oficina mecânica e quando ela passava um mecânico ficava a cantarolar a musiquinha “ai se eu te pego, ai, ai se eu te pego”. Ela nem podia fazer nada porque a tal música tocava o dia inteiro nos rádios.

Mariana não podia se queixar do seu emprego, era a principal corretora de uma empresa especializada na venda de seguros e planos de saúde, tinha sua própria sala e era querida por todas as garotas que lá trabalhavam, a maioria em pequenos boxes do setor de televendas.

Cássia, a diretora do escritório era dois anos mais velha que ela e filha do dono que raramente dava as caras por lá. O único homem que efetivamente trabalhava no escritório era Pedro, ou “seu Pedrinho” como era conhecido por todas. De copeiro a eletricista e encanador, passando por contínuo Pedro era uma espécie de faz tudo. Pedro era um homem maduro, passava dos cinquenta anos de vida e sabia-se que era divorciado e vivia sozinho em um quarto de pensão nas imediações. Cassia já tinha cogitado demiti-lo, mas ele nunca deu motivos para isso.

Como acontecia todos os dias, quando Mariana chegou ao trabalho Pedro a aguardava na recepção.

—Bom dia dona Mariana, fez uma boa caminhada?

—Bom dia Pedro. Sim, foi uma boa caminhada.

—Já deixei em sua sala a garrafa térmica com água fervendo para a senhora fazer seu chá.

—Obrigada Pedro.

Enquanto caminhava para sua sala Mariana pensava: “puxa saco. Mais um que me aguarda só para me bajular e depois olhar para minha bunda. Teria sido ele quem enviou a calcinha?”

Mais de uma vez Cássia a tinha abordado sobre Pedro a aguardar todos os dias na recepção querendo saber se de alguma forma ele estava sendo “Inconveniente”.

—Não se preocupe com isso dona Cássia, ele só quer mesmo é me bajular e olhar para a minha bunda.

—Já te falei que não precisa me chamar de dona, me chame apenas pelo meu nome

—Eu não me sinto muito a vontade de trata-la pelo nome e por você, afinal a senhora é minha chefe.

—Você conhece tanto sobre o teu trabalho que nem me considero tua chefe e sim uma colega de trabalho, e quanto ao Pedrinho, você não se importa de ele te aguardar todos os dias só para olhar para tua bunda?

Se eu me importar com isso vou ter que brigar com muita gente.

—Bom, pelo menos ele demonstra ter bom gosto, mas se ele te incomodar me avise, por favor.

Mariana corou por causa do comentário que Pedrinho tinha com gosto ao admirar sua bunda. Será que Cássia também achava sua bunda atraente?

Cássia também era solteira. Sabia-se que há alguns anos ela namorava Erickson, o CEO de outra empresa da sua família. Todos sabiam que normalmente às sextas feiras ele a levava jantar em um badalado restaurante, e ela já o tinha acompanhado em algumas recepções promovidas pela empresa. Todos diziam que formavam um casal perfeito.

Durante o dia Mariana tentou se desligar da misteriosa carta que recebera, poderia ter partido de qualquer pessoa que a conhecia, inclusive de alguma garota invejosa do setor de televendas que quisesse a fazer perder o foco no trabalho e assim se favorecer.

Mariana e Ester, uma garota do televendas se tornaram amigas e costumavam almoçar juntas, naquele dia Mariana resolveu “sondar” sobre a possibilidade de a carta ter partido de dentro da empresa, só mentiu sobre teor da carta.

—Você parece preocupada Mariana. Está com algum problema?

—Ainda não sei se é problema, mas ontem recebi uma carta com uma declaração de amor. A pessoa não se identificou e o endereço do remetente não era verdadeiro.

—Uau! Uma declaração de amor de um apaixonado desconhecido. Se eu fosse você não ficaria muito preocupada, fique de olho nos garotos que conhece e logo vai descobrir quem foi que te enviou a tal carta.

—Você tem razão, amanhã já é sábado, não vou estragar meu final de semana com essa bobagem.

—O que pretende fazer no final de semana?

—Amanhã pela manhã faço faxina no meu AP., não gosto de estranhas mexendo nas minhas coisas. A tarde descanso, a noite vou ao cinema, e no domingo vou à piscina do clube dar uma reforçada no meu bronzeado.

—Você já está quase mulata, pretende sair de rainha da bateria em alguma escola de samba? —disse a amiga rindo.

—Quem me dera, não tenho talento para sambar.

—Pode ser que não tenha talento para sambar, mas com o corpão que você tem quem vai olhar para teus pés para saber se está sambando direito.

—Bondade tua amiga.

Durante o resto do dia Mariana não conseguiu esquecer a tal carta nem as conversas meio estranhas daquele dia. Primeiro Cássia elogiando sua bunda, depois a amiga do televendas elogiando seu corpo, tudo isso sem contar o hábito de Pedrinho a aguarda na recepção todos os dias. Precisava esquecer tudo aquilo, aquela carta estava transformando fatos corriqueiros em evidências de um crime.

Ao chegar no seu prédio naquela sexta feira, Mariana gelou ao ver na sua caixa de correspondência mais um envelope cor de rosa tendo como remetente o próprio endereço dela. Já no seu apartamento abriu o envelope e o conteúdo era idêntico ao anterior, um papel com a mensagem “Eu seria a pessoas mais feliz do mundo no dia que pudesse te ver tirando lentamente esta calcinha.”,  e uma calcinha tamanho G, só que dessa vez era na cor vermelha. Mais uma vez Mariana olhou a etiqueta da peça e constatou que de uma marca famosa, uma das mais caras do mercado. Aquela brincadeira estava ficando caro para quem quer que fosse que estivesse enviando aquelas cartas. Como fez com a carta anterior, recolocou a calcinha dentro do envelope e o guardou na sua bolsa.

Como acontecia em todos os sábados, antes de iniciar a faxina no apartamento Mariana recolheu suas roupas sujas e as levou para a lavanderia. Enquanto catalogava as peças o rapaz do balcão comentou:

—As garotas da lavanderia comentaram que o plano que a senhora paga prevê a lavagem de roupas íntimas e a senhora nunca trouxe nenhuma. Se quiser pode trazer que elas serão tratadas com o mesmo cuidado das demais peças.

—Minhas roupas íntimas prefiro eu mesma lavar imediatamente pois não gosto que fiquem sujas por mais de um dia.

Aquele comentário só serviu para adicionar mais um suspeito na lista de Mariana. Ela já era cliente daquela lavanderia há mais de seis meses, por que só agora ele veio falar de suas roupas íntimas?

Saindo da lavanderia passou em um hipermercado onde comprou uma persiana do tamanho da janela do seu quarto, depois telefonou para um senhor que realizava pequenos serviços pedindo que ele a instalasse ainda naquele dia. Pronto, agora o tarado do prédio vizinho nunca mais olharia para dentro do seu quarto.

Já no domingo, enquanto tomava banho de sol na piscina do clube teve a impressão que um dos guarda-vidas não tirava o olho dela. Até mesmo quando foi à lanchonete comprar uma água de coco teve a impressão que ele a seguiu com os olhos. Seria ele o tarado anônimo? —Meu Deus, estou ficando louca—, pensou Mariana.

Na segunda feira Mariana decidiu mudar de caminho ao ir para o trabalho, seriam duas quadras a mais, mas não passaria em frente a oficina e nem em frente a loja de automóveis. Seu dia transcorreu normalmente, até que ao voltar para casa mais uma vez encontrou na sua caixa de correspondência o envelope cor de rosa, só que dessa vez a calcinha era da cor lilás.

Na terça feira enquanto almoçava com Ester, Mariana resolveu abrir o jogo, precisava falar com alguém senão enlouqueceria.

—Se lembra quando eu te falei da carta com uma declaração de amor? Não foi totalmente honesta com você, não foi uma declaração de amor.

—E o que foi então?

E Mariana contou a Ester sobre as cartas e as calcinhas. — Não sei mais o que fazer Ester, estou ficando assustada.

—Já pensou em algum ex-namorado ou em alguma paquera que não deu certo?

—Namorado? Há bastante tempo não tenho nenhum. Paqueras? Bom, recebo cantadas o tempo todo, mas não lembro de ninguém que pudesse fazer esse tipo de coisa.

—Então, a melhor coisa a fazer é juntar todas as cartas e registrar uma queixa na delegacia da mulher, quem sabe uma investigação nos correios ou as imagens das câmeras de segurança possa revelar o culpado.

—Bem pensado Ester, amanhã trago todas as cartas e na hora do almoço vou até a delegacia da mulher aqui perto.

Naquele mesmo dia ao chegar em casa mais um envelope, e mais uma calcinha no tamanho G só que na cor amarela.

Mariana tinha perdido sua liberdade, na porta do apartamento agora tinha uma trava de segurança, a janela do seu quarto agora era fechada por uma persiana, se assustava com qualquer homem que entrasse junto com ela no elevador, precisava acabar com aquilo o mais breve possível.

Naquela quarta feira Mariana saiu de casa decidida a ir na delegacia, mas quando chegou na sua sala na empresa onde trabalhava notou algo que mudaria todos os seus planos para aquele dia, sobre sua mesa, ao lado da garrafa térmica com água quente deixada pelo Pedrinho havia um envelope cor de rosa com o seu nome escrito. No envelope não tinha selos dos correios nem endereço, estava escrito apenas: Para Mariana. Em Mãos. Muito ervosa Mariana pegou aquele envelope e rumou para a sala der Cássia, sua chefe.

—Bom dia dona Cássia.

—Bom dia Mariana, tudo bem com você? E já te falei que não precisa me chamar de “dona”.

—Prefiro assim dona Cássia, e não está tudo bem. Estou sendo assediada por alguém de dentro da empresa.

—Assediada como?

Retirando as cartas da bolsa Mariana jogou sobre a mesa de Cássia dizendo:

—Desde quinta-feira tenho recebido essas cartas na minha residência—, e jogando o outro envelope sobre os demais completou: —Hoje encontrei esta sobre a minha mesa.

 Abrindo uma das cartas, vendo seu conteúdo e lendo o bilhete, Cássia disse:

—Acho que sei quem fez isso—, e apertando o botão do intercomunicador disse a recepcionista: — Mande o Pedrinho vir imediatamente na minha sala.

Logo que Pedro entrou na sala, ela disse com um tom de voz bem autoritário:

—Quero que você me explique como este envelope foi parar na mesa da senhorita Mariana.

Se mostrando nervoso e confuso, Pedro disse:

—Não sei de nada dona Cássia, só entrei lá para deixar a água do chá.

—Senhor Pedro. — disse Cássia — As garotas do televendas vão entrar daqui uma hora, a recepcionista não sobe neste andar, logo só pode ter sido você que chega mais cedo.

—Juro que não fui eu dona Cássia, ele já estava na mesa dela quando levei a garrafa.

—Pois bem Pedro, creio que vou ter que te demitir, mas antes quero falar com meu pai que te colocou aqui. — E virando para Mariana disse: — Posso guardar esses envelopes como prova?

—Claro que pode, na verdade nada disso é meu.

Cassia abriu o armário atrás de si jogou as cartas dentro e virando para Pedrinho disse: Você pode assinar teu ponto e ir embora. Aguarde um comunicado meu.

Quando Pedrinho já ia saindo, Mariana o interrompeu dizendo:

—Um momento senhor Pedro, e virando para Cássia disse: Acabei de descobri quem foi que me enviou essas cartas, e não foi o senhor Pedro.

—Quem foi então? — Perguntou Cássia.

—Mande o senhor Pedro voltar ao trabalho que te conto no particular.

—Pedro, pode voltar para suas atividades, mas quero estabelecer novas regras: Não quero mais que aguarde na recepção a chegada da senhorita Mariana, e está proibido de entrar na sala dela sem motivo e sem autorização. Não quero nem mesmo que leve a água para o chá, se necessário eu mesma faço isso.

Logo que Pedro saiu, Mariana disse à Cássia:

—Quem me enviou as cartas foi a senhora, só não entendo o motivo.

—Como pode afirmar isso?

—Quando a senhora abriu o armário percebi três coisas, a primeira foi perceber o mesmo perfume que senti nos envelopes, a segunda foi o fraco desse perfume guardado dentro do armário, e a prova conclusiva são aqueles envelopes cor de rosa colocados ao lado do perfume.

 Abaixando a cabeça com voz embargada Cássia disse:

—Você tem razão, fui eu que te enviei as cartas, e agora estou morrendo de vergonha do meu ato.

—Não entendo por que a senhora fez isso.

—Por ciúmes. Não suporto a forma como o Pedrinho olha para você, e armei tudo para ter um motivo para demiti-lo já que ele é protegido do meu pai.

—Com ciúmes de mim? Mas a senhora não é quase noiva do senhor Erickson?

Com um sorriso malicioso nos lábios Cássia respondeu:

—Meu caso com o Erickson é na verdade uma farsa. Embora pinte de machão ele é gay. Na outra empresa do meu pai, onde ele trabalha a diretoria é homofóbica, por esse motivo pedi para sair de lá. Eu e o Erickson temos um acordo para manter as aparências. Meu pai não fica me cobrando para arrumar um namorado e a chefia do Erickson o deixa em paz.

—Tudo bem dona Cássia, só espero que essa confusão não coloque em risco meu emprego. Gosto de trabalhar aqui.

—Não se preocupe, teu emprego está garantido e tenha a certeza que eu não te assediarei.

—Posso ir agora?

—Claro, vá.

Abrindo a porta para sair, Mariana olhou para traz e disse:

—Cássia, eu só uso calcinhas brancas e meu tamanho é M.  

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