outubro 2020 - S. Esteves

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terça-feira, 20 de outubro de 2020

Aquela semana - Conto

outubro 20, 2020

 


Eu não queria acreditar que depois de quase seis meses Leila voltasse a me procurar. Será que logo ela que me ensinou tanta coisa não entedia o sofrimento que sua partida me causou?  

Tenho que admitir que no começo eu só queria tirar uma casquinha dela. Meu negócio era comer a garota e dar o fora como já tinha feito com tantas outras, mas Leila é diferente de todas as outras garotas com quem me envolvi.  

Aos poucos com seu jeitinho brejeiro Leila me conquistou, e sem que eu me desse conta em apenas uma semana ela converteu aquele boizinho inconsequente que eu era no homem respeitável de hoje.

Pego novamente meu telefone celular e releio a mensagem que ela me enviou:

“Lembra que há seis meses te falei que talvez eu tivesse que fazer uma viagem? Pois é, tentei de tudo para evita-la, mas não consegui. Viajarei nos próximos dias, só falta marcar a data. Por favor, leia o e-mail que te enviei pois me sinto obrigada a justificar minha decisão de romper o relacionamento com você logo depois que parti”.

Decido não ler aquele e-mail e o excluo de minha caixa de entrada, telefono para Mariana, minha namorada atual e combinamos de nos encontrar logo mais à noite para assistir a um filme.

Mariana também é uma boa moça e gosto dela, mas o enorme buraco que Leila deixou no fundo da minha alma se transformou em um abismo entre mim e outras garotas.

Ainda me lembro quando a vi pela primeira vez. Leila estava sentada em um banco da praça diante do portão de entrada e saída dos alunos da faculdade. Ela olhava para o portão como se estivesse esperando pela saída de alguém. Lembro de ter me aproximado dela e perguntado:

—Está esperando a saída de alguém?

Como alguém que é pego de surpresa fazendo algo errado ela olhou para mim e respondeu:

—Ninguém especial, é que cheguei na cidade ainda hoje e estou me sentindo meio deslocada. Quando vi os alunos saindo foi quase que um remédio para diminuir minha solidão.

Naquele momento o homem que sou fechou os olhos e deu lugar ao predador.

—Se é companhia que busca, posso te convidar para tomar um café ou um refrigerante.

—Se puder me acompanhar a um local onde eu posso tomar um bom suco de laranja já me sentirei grata.

—Então, o que faz a gata sozinha nesta cidade cheia de feras? —Perguntei jogando o meu melhor charme.

—Estou à passeio me preparando para uma difícil jornada. Achei melhor descansar um pouco e pôr em prática algo que planejei para esses dias.

—Pode me contar seus planos ou é segredo de estado? — Disse tentando tocar na mão dela sobre a mesa.

Retirando a mão rapidamente ela diz:

—Por enquanto não vejo motivo algum para contar os meus planos a alguém que acabei de conhecer, e tem outra coisa, você é simpático, mas corre demais.

—Desculpe, é que é difícil me controlar estando ao lado de uma garota como você.

—Uma garota como eu? Você acabou de me conhecer.

—Você é linda, ou não sabe disso?

—Você está vendo só a embalagem. Acredite, se quer se dar bem na vida aguarde até os pacotes serem abertos para saber o que tem dentro.

No dia seguinte voltamos a nos encontrar, e o tema da conversa acabou sendo sexo. Quando disse a ela que não tinha nenhuma namorada fixa e que praticava sexo eventual onde os dois se divertiam sem compromisso algum, ela só balançou a cabeça e perguntou:

—Alguma vez você já fez alguma mulher gozar de verdade?

—Creio que sim, até hoje nenhuma reclamou.

—Depois que gozaram já olhou nos olhos de uma mulher percebendo um brilho de felicidade? Já viu alguma com lágrimas nos olhos e com um sorriso bobo na cara? Já mandou flores para alguma garota no dia seguinte agradecendo pela melhor transa da tua vida, mesmo que não seja verdade?

Ela estava certa no que dizia, eu dava tão pouco de mim que a maioria das garotas se afastava depois que eu as comia. Essa garota estava começando a mexer com as minhas estruturas.

—Eu ainda sou virgem—, disse ela, —Sabe por que?

—Falta de interesse pelo sexo?

—Não. Ainda sou virgem porque os namorados que tive sempre foram muito volúveis, dificilmente algum deles faria eu me sentir realizada, uma mulher verdadeira, completa e não apenas um deposito de esperma.

—Você não está exigindo demais dos garotos com quem namorou?

—Sabe com que se parecem a maioria dos garotos de hoje? — perguntou ela.

—Não faço a menor ideia.

—Parecem um galinheiro.

—Um galinheiro?

—É, um pinto e dois ovos cercados por meia dúzia de galinhas.

—Com essa conversa toda você quis dizer que eu não tenho a menor chance com você?

—Não sei. Tudo depende de você. Quero te pedir que leia um trechinho da bíblia.

—Um trecho da bíblia? Que pedido mais estranho.

—Leia: 1 Coríntios 13: 11. SE até o final desta semana quando devo partir você conseguir ser daquele jeito talvez eu te dê uma chance.

Logo que cheguei em casa peguei a Bíblia que minha mãe mantém na estante e li o trecho que ela me pediu:

“Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.”

Naquele momento voltei a me questionar: Que tipo de pessoa eu sou e o que espero do meu futuro? Mais uma vez eu tinha que dar razão a ela. Com idade de vinte e três anos e prestes a me formar eu não passava de um meninão mimado. Estava na hora de mudar.

Durante aquela semana nos encontramos todos os dias, ela falava de misticismo, de meditação, de viagens astrais com a mesma desenvoltura que falava sobre a vida, a mim me dava a impressão que era uma anciã no corpo de uma garota. Sem que eu pedisse, passou um dia inteiro comigo me ajudando a estruturar melhor o meu TCC – Trabalho de Conclusão de Curso já que era meu último ano na faculdade.

Quando o final daquela semana se aproximava eu já me sentia mais centrado nas matérias da escola. Meus pais chegaram a comentar que eu estava mais atencioso com eles. Naqueles poucos dias Leila estava fazendo de mim um novo homem.

Ao mesmo tempo que eu me sentia mais alegre e confiante, me dava um nó na garganta ao pensar que no domingo ela partiria talvez para nunca mais voltar.

Que mistérios tem por traz daquela garota alegre e comunicativa, mas que que não consegue esconder a tristeza e uma grande dor por algo ou algum fato do passado?

Acredito que Leila veio para cá fugindo de algum relacionamento tumultuado e que a jornada a que se referiu era tentar se livrar dessa pessoa sem maiores traumas. Faz todo sentido, provavelmente ela não tenha conseguido se livrar daquela pessoa e agora se sinta ameaçada obrigando-a a viajar para bem longe.

Por que Leila não confiou em mim? Nem ao menos seu número de telefone verdadeiro ela me deu, o número que eu tinha era de um chip pré-pago que ela comprou aqui na cidade.

Foi difícil admitir, mas eu estava completamente apaixonado por Leila, e mesmo ela me alertando que partiria no domingo ainda tinha a esperança que ela voltasse em breve.

Meus lábios ainda queimam e sinto o gosto dela quando lembro do nosso primeiro beijo, para mim foi como se nunca antes eu tivesse beijado uma garota. Naquela sexta ela me lembrou que partiria no domingo e que gostaria de ter um sábado especial junto comigo. Não pensei que ela fosse aceitar, mas fiz a proposta assim mesmo.

—Meus pais viajam sábado de madrugada e só voltam na noite do domingo, ficarei sozinho em casa, que tal passarmos o sábado na piscina da minha casa?

Vi seus olhos brilharem quando ela deu um gritinho dizendo:

—Fantástica ideia, sempre quis passar um dia inteiro na beira da piscina acompanhada de um gatão como você.

Pego de surpresa pelo seu entusiasmo, arrisquei fazer mais uma proposta:

—Podíamos iniciar esse dia especial ainda hoje, indo à algum lugar onde possamos dançar e nos divertir um pouco.

 

Como ela aceitou levei-a a um restaurante que tinha música ao vivo e uma pequena pista de dança, e foi na pista de dança que eu senti pela primeira vez o calor e a energia do corpo dela colado ao meu. Diferente do que aconteceu com outras garotas eu não tive uma ereção, a necessidade que eu sentia era de protege-la e não comê-la. O restaurante era próximo à pousada onde ela estava hospedada, então decidimos ir caminhando. A rua estava deserta, e quando chegamos diante da pousada ela me surpreendeu mais uma vez, enlaçou seus braços em torno do meu pescoço e me beijou. Jamais esquecerei aquele momento, nunca antes tinha me sentido daquele jeito, foi uma explosão de sensações inexplicável. Jamais esquecerei a emoção que senti ao ver o brilho nos seus olhos depois do beijo. Ela se despediu com um ”até amanhã” e me deixou plantado ali com um sorriso idiota nos lábios.

Peguei-a na pensão no sábado logo cedo, ela já estava com biquini vestido por debaixo das roupas, levava apenas uma bolsa com roupas íntimas para vestir depois e artigos de higiene. Enquanto eu enchia o colchão flutuante, ela tirou as roupas e as arrumou em cima de uma cadeira e pulou na piscina, foi então que me surpreendi ao notar que ela não estava usando a parte de cima do biquini. Larguei o colchão já cheio na beirada da piscina, tirei minhas roupas ficando apenas de sunga e pulei na água. Entre beijos e abraços, com voz rouca ela me pediu para continuarmos no colchão de ar. Ela foi direto até sua bolsa, pegou uma tira de preservativos e um potinho de creme lubrificante vaginal, deixou-os ao lado do colchão e deitando sobre mim me pediu: “Me faça mulher, mas por favor seja gentil, é a minha primeira vez” E ali na beira daquela piscina foi que eu entendi tudo aquilo que ela tentou me ensinar durante a semana, vi aquele brilho nos olhos dela, vi aquele sorriso entre lágrimas de contentamento que muito além do monumental orgasmo que tivemos me fez sentir o homem mais realizado do mundo. Nem mesmo as 529 posições do Kama Sutra seriam capazes de me dar uma satisfação tão grande como a que senti no tradicional “papai e mamãe”, eu amava aquela mulher, sabia que ia perde-la, mas naquele momento nada disso importava.

Passamos a noite juntos, na manhã de domingo ela partiu, não deixou endereço e nenhum meio de contato, só disse que caso resolvesse seus problemas e não precisasse viajar voltaria.

Recebo uma nova mensagem de Leila: “Já faz uma semana que venho postergando minha partida, agora não posso mais esperar. Por favor, leia o e-mail que te enviei”.

Com o coração aos pulos resgato o e-mail da lixeira e o leio.

“Meu amor, creio que posso te chamar assim. Lembra-se quando te disse que ia por em prática algo que tinha planejado? Eu queria perder a virgindade com o melhor homem que encontrasse, e dei sorte de encontrar o melhor homem do mundo, você. Eu queria me sentir uma mulher completa deixando para traz todos os tabus e pudores infundados e com você consegui tudo isso. Meu único erro foi me envolver e permitir que você se envolvesse emocionalmente. Me apaixonei por você mesmo sendo um amor proibido. Nuca quis te usar nem te causar mal e espero que me perdoe se isso aconteceu. Eu tentei de tudo para evitar a viagem que te falei, mas não consegui. Estou de partida, minha família está organizando uma reunião para que os amigos se despeçam de mim e queria que você viesse, minha viagem não vai ser tranquila enquanto não ouvir de você que me perdoa por ter te usado daquela maneira. Por favor, venha na minha despedida, mas não tenha esperança de me convencer a ficar. Sei que está namorando uma boa garota, fique com ela, ela te fará feliz. Obrigada, Leila.”

Naquele momento tomo uma decisão, Leila foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, ela não merece ser desprezada dessa maneira. Pego meu celular e respondo a última mensagem recebida: ”Por favor, me mande o endereço onde posso te encontrar”

A resposta chega imediatamente: “Aí vai o endereço, a despedida será feita no salão paroquial da igreja. Estarei nos fundos do salão me despedindo dos meus familiares e amigos.”

A cidade onde ela está fica a menos de duzentos quilômetros de onde estou, em duas horas ou duas horas e meia chego lá.

Havia um movimento moderado de pessoas entrando e saindo do salão, nos bancos laterais vária pessoas sentadas. Caminho em direção aos fundos e fico horrorizado ao ver grandes castiçais com velas acesas, coroas de flores e um sarcófago, e dentro dele lá estava ela, Leila.

Paro ao lado do sarcófago e não consigo conter as lágrimas e entre soluços digo: ”Me perdoa, eu não fui digno de você, descanse em paz sabendo que fez de mim um homem melhor do que jamais fui”.

Uma senhora se aproxima de mim, coloca a mão sobre meus ombros dizendo:

—Você deve ser o Thiago, nos últimos seis meses ela falava de você o tempo todo.

—Como ela morreu? — perguntei.

—Quando te conheceu ela não te contou? Antes daquela viagem ela foi diagnosticada com um tipo de câncer muito agressivo, ela já sabia que tinha poucas chances de viver quando viajou. Ela ficou em coma durante a última semana inteira, mas parece que se recusava a morrer.

Logo que saio do salão recebo mais uma mensagem: “Esta será a última mensagem que te envio. Agradeço por ter vindo, agora posso partir em paz. Estou caminhando em direção à luz, não sinto medo, parto em paz com Deus, comigo e com o mundo. Adeus”

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sábado, 17 de outubro de 2020

Maria - Conto

outubro 17, 2020

        

Sei que não estou febril. O termômetro na parede da cozinha marca trinta graus Celsius, mesmo assim sinto frio e transpiro muito.

Todo auto controle que eu julgava ter e todo planejamento dos últimos quinze dias não foram suficientes para me preparar para este momento crucial.

Sobre a mesa da cozinha quatro objetos: O frasco com comprimidos antidepressivos, o frasco com comprimidos para dormir, a garrafa com vodca e um revólver com cinco balas no tambor. Há quinze dias quando planejei o que ia fazer hoje, eu sabia exatamente o que desejava e deveria fazer, agora já não tenho muita certeza.

Há quinze dias nem o frasco com antidepressivos nem os com comprimidos para dormir não saíam da gaveta do meu criado-mudo, há dois meses a garrafa com vodca não saia do congelador, e há seis meses quando o limpei pela última vez o revolver não saia de cima do guarda-roupas. Se a combinação de apenas duas dessas coisas que estão sobre a mesa já pode causar resultados imprevisíveis, imagine as quatro juntas o que pode causar.

Estou cansado de tudo isso, às vezes minha vontade é engolir todos os comprimidos dos frascos e beber a garrafa de vodca em um só gole. Se fizesse isso quem sabe não dormisse em paz por alguns dias, ou talvez deixasse de vez este mundo que há muito tempo não me oferece nada de bom.

Antes eu era feliz, sou dono de uma micro empresa bem sucedida, vida financeira bem resolvida e casado com Maria, que eu julgava ser a melhor mulher do mundo, até descobrir que ela me traiu com Ricardo, aquele que eu considerava meu melhor amigo. Não nos divorciamos, a medida mais drástica que tomei foi dar uma surra naquele filho da mãe que eu julgava ser meu amigo. Ele não reagiu e nem adiantaria porque sou muito mais forte que ele. De qualquer forma a consequência dessa briga foi a mulher dele ficar sabendo da traição. Diferente de Maria ela não saiu de casa, mas no prédio onde eles moram dizem que depois da surra que o marido levou ela troca mais de amante do que de calcinha.

A traição de Maria só foi descoberta porque eles deram muito azar. Aquele safado que se dizia meu amigo além de traidor é muito burro, levou Maria para um hotel no centro da cidade que era muito frequentado por garotas de programa como se ela fosse uma rameira qualquer. Mal tinham entrado no hotel quando a polícia foi verificar uma denúncia da presença de garotas menores de idade. Não houve nenhum registro policial deles no hotel, mas o investigador de polícia que acompanhava o caso é meu amigo e ao reconhecer Maria disse a ela que eu ficaria sabendo do fato. Antes mesmo que ele me contasse sobre a traição, Maria confessou o que tinha feito, disse que se sentia suja, envergonhada e não digna do amor que eu sempre dediquei a ela. Falou que não sabia o que deu na sua cabeça, que Ricardo já a vinha assediando há muito tempo com elogios e outros mimos. Aos prantos disse que não esperava o meu perdão, mas queria que eu soubesse que aquela foi a primeira e ultima vez que saiu com outro homem e que na verdade nada houve porque a polícia chegou instantes depois de eles entrarem no quarto.

Após a confissão Maria fez suas malas e foi viver no nosso apartamento no Litoral e eu fiquei no outro apartamento na capital.

Nunca mais nos falamos, nunca formalizamos a divisão dos bens, a única coisa que aconteceu foi ela me enviar um e-mail dizendo que ela pagaria as despesas de condomínio, energia elétrica e IPTU do imóvel, disse também que o apartamento seria bem cuidado e que jamais levaria outro homem para dentro de uma casa que um dia também já foi minha.

Tenho que admitir que Maria é uma mulher incrível e antes da traição eu era totalmente apaixonado por ela. Ainda sinto sua falta, mas a traição dela foi imperdoável. Será que a traição foi mesmo imperdoável? No meu estado emocional atual às vezes fico meio confuso.

Através de amigos que tenho no litoral soube que Maria emagreceu muito, se tornou uma mulher triste e só sai do apartamento para trabalhar, nem à praia vai, mesmo que o prédio onde mora esteja de frente para o mar.

Estou confuso, será que Brenda tinha razão? Será que realmente preciso tomar antidepressivos? Não sei. A única coisa que sei é que Brenda jogou mais uma pá de merda na minha vida que já estava toda cagada.

Quando Maria foi embora eu tentei não entrar em depressão, e para mim naquele momento me pareceu que frequentar um clube seria uma boa ideia. Um quarentão com porte atlético boa aparência como eu não fica por muito tempo sozinho dentro de um clube, e foi assim que conheci Brenda.

Brenda é uma mulher bonita, sexy, inteligente, culta e muito carinhosa, atributos mais que perfeitos para fisgar um trouxa como eu que se sentia carente.

Em menos de uma semana levei Brenda para a cama, e um mês depois ela estava vivendo comigo.

Durante os primeiros dias tudo corria bem, mas depois de algum tempo a falta que eu sentia de Maria começou a cobrar seu preço. Às vezes eu acordava em plena madrugada e não conseguia mais dormir, ou então do nada brotava em mim uma tristeza tão intensa que parecia que alguém muito próximo havia morrido. Nunca enfartei, mas pelas histórias que ouço a dor que eu sentia no peito se assemelhava a dor de um enfarto.

Tentando me livrar de toda aquela angústia, resolvi voltar a acampar em meio às matas, pratica essa que eu tinha abandonado logo depois que me casei com Maria. Um final de semana por mês eu preparava minha mochila e  sozinho me embrenhava nas matas. Como sempre levava pouca coisa: latas de conserva e pão suficientes para três dias, repelente para insetos, alguns medicamentos para emergências, um facão e um plástico para montar uma barraca. Brenda não me acompanhava e eu nem queria companhia, minha intenção sempre foi ficar sozinho ouvindo apenas os sons da natureza. Por insistência de Brenda que achava que eu corria riscos estando sozinho nas matas, comprei de um amigo dela esse revólver que nas minhas mãos não deu um único tiro.

O acampamento na mata me trazia um pouco de conforto, mas no terceiro dia após a minha volta os sintomas de ansiedade voltavam com toda força.

Por sugestão de Brenda, eu que não ingeria bebidas alcoólicas comecei a tomar uma caipirinha de Vodca toda noite na tentativa de dormir melhor. Depois de uma semana desisti da bebida pois além de não melhorar meu sono ainda me dava uma tremenda dor de cabeça.

Um dia Brenda me sugeriu que eu fosse me consultar com uma amiga dela que é psicóloga, psiquiatra e psicoterapeuta. Hoje penso que aquela perua é mais louca que eu, pois já na primeira consulta me receitou antidepressivos de tarja preta.

Logo depois que comecei a tomar o antidepressivo comecei a ter uma acentuada deficiência de concentração e por esse motivo acabava esquecendo de compromissos importantes, assim Brenda começou a gerenciar alguns negócios meus. Só não dei a ela acesso total a minha carteira de ações de grandes empresas, porque julgava que aquele patrimônio também pertencia a Maria, e que algum dia teria que prestar contas a ela.

Outro efeito colateral do antidepressivo foi que aos poucos minha libido foi diminuindo, se no início tínhamos relações quase que diariamente, a frequência e o entusiasmo diminuíram a tal ponto que no último mês trepamos apenas uma vez, e mesmo assim eu não gozei.

Dizem que quando nos falta algo em casa podemos pedir emprestado ao vizinho, e foi isso que Brenda fez, pegou emprestado todos os homens das redondezas. Do porteiro ao síndico do prédio, do entregador de pizza ao dono do restaurante ninguém escapou das garras de Brenda, ela deu para todos eles. Fico surpreso como eu nunca percebi nada, ou enganava a mim mesmo fingindo que não percebia.

Brenda não sabia que eu tinha parado de tomar o antidepressivo na esperança de recuperar meu antigo apetite sexual.

Sem o antidepressivo meu raciocínio funcionava melhor e aos poucos percebi uma mudança de comportamento em Brenda. Primeiro sugeriu que eu eventualmente tomasse alguma bebida alcoólica, podia ser a vodca mesmo já que a garrafa estava pela metade. Quando questionei se não era perigoso beber vodca junto com antidepressivos ela disse que era tudo bobagem. Depois veio com uma conversa estranha sobre um homem cuja depressão atingiu um nível tão alto que ele cometeu suicido. Depois de uma pausa estratégica para dar a impressão que estava pensando, Brenda finalizou a conversa dizendo que talvez o suicídio tinha sido para ele uma saída inteligente já que não se sentia em paz há muito tempo. O que Brenda estava querendo fazer, me induzir ao suicídio?

Quando desconfiei que Brenda estava me traindo fiz um levantamento da fatura do meu cartão de crédito e descobri várias compras que eu não tinha conhecimento, quase todas em lojas especializadas em vestuário masculino. Quer dizer que além de chifrudo eu estava financiando os amantes dela? Tirei também um extrato da minha conta corrente nos últimos dois meses e constatei algumas transferências que eu desconhecia para contas em outros bancos.

Eu precisava tomar uma medida drástica, mas não queria cometer o mesmo erro que cometi com Maria tomando uma decisão precipitada, e que me arrependeria depois.

A primeira lição que tive quando resolvi praticar artes marciais foi que eu deveria usar a força do inimigo contra ele mesmo, mas contra ela além da força eu usaria também suas fraquezas. Se eu quisesse descobrir algo teria que “dopar” a Brenda e vascular nas suas coisas.

Uma das fraquezas de Brenda era que ela era uma pessoa bem previsível. Como não tínhamos o hábito de jantar, toda noite ela pegava um copo com suco de laranjas, um pacote com salgadinhos e sentava diante da TV para assistir alguma série.

No dia que resolvi agir, enquanto Brenda tomava banho dissolvi três dos comprimidos que eu usava para dormir no suco de laranja que estava na geladeira. Pela quantidade de suco que ela costumava beber provavelmente a dose que tomaria seria o equivalente a dois comprimidos, o suficiente para ela dormir em sono profundo a noite inteira. Menos de dez minutos depois do início do episódio, Brenda deitou no sofá e em instantes estava dormindo.

Outra previsibilidade de Brenda era com relação a senhas, ela usava sempre seu aniversário como senha para quase tudo, e assim não me foi difícil acessar tudo o que tinha no seu mobile, e o que vi me deixou realmente emputecido. Era todo tipo de mensagem trocada com alguns de seus amantes nos últimos meses, sendo que uma delas fazia referências diretas a mim e sobre algo que estavam planejando:” tenho que agir rápido, parece que ele já suspeita de algo e logo descobrirá toda verdade.” Pluguei o telefone no meu notebook, fiz backup das conversas e copiei todas as fotos, com o tempo verificaria se tinha alguma interessante.

Terminada a verificação do mobile, o segundo passo era vasculhar a sua bolsa, e mais surpresas, alguns preservativos, lubrificantes para a prática de sodomia e um par de algemas revestidos com veludo cor de rosa. Em um zíper lateral da bolsa encontrei quatro cartões de bancos diferentes, ali estava a explicação para as transferências de dinheiro da minha conta, mas o que mais me deixou assustado foi uma apólice de seguro de vida tendo Brenda como única beneficiária.

Eu estava sendo traído e roubado, estavam planejando a minha morte para ficarem com a grana do seguro de vida. Tudo estava planejado aguardando apenas uma ocasião oportuna.

Brenda continuava dormindo em sono profundo, olho para ela, tão linda e perigosa quanto uma Naja. A vontade que eu tive foi de esganá-la ou então pegar o revólver e meter uma bala na sua cabeça, mas não faria isso, principalmente dentro daquela casa que também era de Maria.

Maria, como estaria ela naquela noite? Ela me prometeu que jamais levaria um home para dentro da casa que um dia foi minha, e eu não tive a mesma força, trepei feito louco na mesma cama que um dia foi dela.

Não dormi a noite inteira, pela internet cancelei os cartões da minha conta corrente que estavam em nome dela, retirei do seu chaveiro as chaves do apartamento e da portaria do prédio, de sua carteira retirei os mesmos cartões que cancelei, apaguei do seu mobile o aplicativo do banco e as senhas salvas.

Já era madrugada quando terminei de colocar dentro do carro dela todas as suas roupas e objetos pessoais deixando no apartamento apenas uma muda de roupas para ela se vestir antes de sair já que estava dormindo de pijama.

Quando Brenda acordou mandei que se vestisse e desse o fora da minha casa. Brenda chorou, pediu perdão, implorou, mas como não cedi mostrou sua verdadeira face me ofendendo com os mais variados palavrões. Com uma serenidade que eu julgava não ter disse a ela que tinha provas que ela estava me roubando há mais de um ano, que eu não a denunciaria se ela saísse naquele momento e não mais me causasse problemas. Brenda virou as costas e saiu.

O mundo dá muitas voltas, uma semana depois da partida de Brenda e quando comecei o planejamento do que faria neste dia, descobri que ironicamente Brenda estava vivendo em um apartamento de sua mãe localizado no litoral, a dois quilômetros do apartamento onde agora Maria vivia.

Dou um telefonema para Maria, eu precisava falar com ela, conversamos por cerca de meia hora e ao desligar tive a certeza que do outro lado da linha Maria chorava. Após o telefonema consulto novamente o relógio, preparado ou não era hora de agir. Me visto com roupas pretas, coloco tudo que está sobre a mesa dentro de uma sacola de papel e parto com o propósito de acabar de vez com aquela angústia.

A pequena viagem até o litoral levaria cerca de uma hora. Tudo estava planejado, mas a balança do destino insistia em pender para o lado errado. Eu tinha que ser forte para fazer o que deveria ser feito e como havia planejado.

Dentro daquela sacola de papel estava tudo o que simbolizava o mal que Brenda me causou, os comprimidos a bebida e o revolver.

Mesmo sendo um local ermo e perigoso, para não despertar suspeitas estaciono o carro em um local normalmente usado por pescadores. Abro os frascos e deixo os comprimidos soltos dentro da sacola de papel, abro a garrafa de vodca deixando a tampa também solta dentro da sacola, coloco o revólver na cintura preso entre a calça e meu corpo, saio do carro e caminho em direção à ponte que cruza o mar pequeno. Do local onde estou até a cabeceira da ponte são cerca de duzentos metros, e da cabeceira até seu ponto mais alto, mais quinhentos metros. Naquela hora de uma madruga de inverno são pouquíssimos os veículos que trafegam pela ponte, principalmente no sentido capital/litoral, logo a probabilidade de algum veículo parar do meu lado e tentar me impedir de fazer o que deve ser feito é quase nula. Respiro fundo, olho para ambos os lados; aguardo a passagem do único veiculo que surgiu na cabeceira da ponte; seguro o cabo do revólver sentindo sua rigidez e seu peso; comprimo a boca do cano contra a minha têmpora. Ao longe vejo o farol de outro automóvel, tenho que agir rápido, dou uma sonora gargalhada diante da ideia ridícula de suicídio que Brenda tentou plantar na minha cabeça. Atiro o revólver no mar seguido da sacola com os comprimidos e a garrafa de vodca. Sinto-me aliviado, volto para o carro e sigo em direção ao apartamento onde Maria está me aguardando.

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quinta-feira, 15 de outubro de 2020

A cadeira vazia - Conto

outubro 15, 2020

 

Olho para a cadeira vazia do outro lado da mesa e me pergunto: —O que estou fazendo aqui?

Sinto solidão. Como diz o refrão da antiga música, estou sozinha outra vez. Naturalmente.

Houve uma época que em torno desta mesa haviam três cadeiras, uma para mim, uma para minha mãe e outra para meu pai. Nunca houve uma quarta cadeira.

Respeitando nossa descendência inglesa, o chá da tarde era uma tradição na minha família.

Meu pai era uma pessoa alegre, sempre pronta a fazer uma graça ou criar uma piada nas situações mais diversas. Minha mãe, embora não admitisse era o tipo sonhadora e otimista, não cansava de dizer que as dificuldades eram degraus para nossa evolução.

Não tínhamos outros familiares no Brasil nem muitos amigos, mas sempre que alguém conhecido estivesse passando por dificuldades financeiras ou emocionais lá estavam eles para ajudar.

No centro da mesa sempre havia um vaso solitário com uma rosa aberta. Minha mãe preferia as rosas abertas aos botões. Ela dizia que botões representam sonhos e esperanças e as rosas a certeza do momento atual. Os botões eram promessas que se cumpririam ou não, e as rosas abertas a realidade sobre a beleza e a grandeza da nossa vida.  Para ela cada pétala que caia só vinha nos lembrar que devíamos aproveitar cada segundo do momento atual, porque nada neste mundo é eterno.

Quando meu pai partiu deste mundo, ficaram na mesa apenas duas cadeiras, uma para mim e outra para minha mãe.

Mesmo a cadeira do meu pai não estando mais ali, ele sempre foi presente em nossas conversas, foram raros os dias que não falamos dele.

O tempo não perdoa, e assim como acontecia com as rosas, dia após dia via minha mãe perdendo o viço, era como se a cada dia caísse uma pétala daquela linda flor que ela foi no passado.

 Assim como as rosas murcham e morrem, chegou o dia em que minha mãe partiu para se juntar ao meu pai no jardim celestial.

Logo após a partida de minha mãe, retirei tanto a cadeira como o vaso solitário, mas em alguns dias me dei conta do meu erro, pois a ausência do vaso e da cadeira só aumentavam a minha sensação de solidão, e assim os recoloquei em seus devidos lugares. Mais uma vez a mesa do chá me parecia completa, a cadeira representava a estabilidade e a segurança que eu via em meu pai, e o vaso com a rosa a energia, a beleza e o amor vivido por minha mãe.

Um dia sem que eu me desse conta, alguém entrou no vácuo da solidão deixada pela ausência dos meus pais. Assim como as abelhas, esse alguém polinizou as flores do jardim da minha vida que mais uma vez se encheu de cores e alegria.

Devagar essa pessoa se infiltrou em minha vida e ocupou a cadeira que um dia foi do meu pai.

Não sei qual foi o exato momento em que substitui no vaso solitário a rosa do hoje pelo botão da esperança. Eu degustava cada palavra dele, parecia que estava vivendo do néctar que ele me fornecia em abundância.

Nesta mesa nós rimos, choramos, sonhamos.

Nesta mesa trocamos nossas histórias, sonhos e esperanças.

Nesta mesa visualizamos um futuro próspero e feliz.

Eu era feliz, e isso era o que importava. Troquei novamente o botão da esperança pela rosa aberta do hoje.

Até meus amigos perceberam a grande mudança que acontecia em mim. Eu era mais carinhosa, mais calma, mais alegre.

De repente a coruja da árvore da minha vida bateu asas sendo seu galho ocupado por um lindo e cantante canário, mas na vida até os canários batem asas e se vão.

Hoje eu olho para traz e me pergunto: — O que deu errado?

O jardim do nosso amor secou por falta de rega?

Houve falta ou excesso de fertilizante?

Ele era uma planta que não se adaptou ao bio-sistema da minha vida?

A culpa teria sido da cadeira, essa cadeira tão antiquada que não oferece o conforto das cadeiras anatômicas modernas?

A cadeira estaria tão impregnada da energia das pessoas que foram importantes para mim causando nele uma overdose que nocauteou nosso amor?

A verdade é que ele se foi. Como as aves que se assustam com os espantalhos, ele bateu asas e sem qualquer explicação voou para longe de mim.

Cá estou eu, sozinha outra vez, naturalmente.

Olho para a cadeira vazia que um dia representou amor e proteção e vejo que ela se transformou em um símbolo de abandono e solidão.

Resoluta levanto da mesa, retiro a cadeira encostando-a em um canto da sala, ligo para a floricultura encomendando um buquê composto de rosas e botões, porque minha vida deve ser mesclada com o agora e o amanhã.

Saio da sala com mais um proposito na minha vida, se alguém quiser sentar-se à minha mesa que venha com um buquê de rosas nas mãos, e traga sua própria cadeira.

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A Bolsa laranja - Conto

outubro 15, 2020

Benigno era um homem sistemático. Levantava da cama todas as manhãs rigorosamente no mesmo horário. Seu desjejum era sempre igual, uma fatia de presunto entre duas fatias de pão de forma acompanhado de uma xícara de café preto e sem açúcar. Benigno detestava leite e seus derivados. Após o desjejum cortava a barba, tomava um demorado banho, vestia um terno cinza, uma camisa branca e uma gravata cor de vinho e ia para o trabalho.

Benigno trabalhava em uma repartição pública, se o terno era obrigatório a cor cinza era uma escolha pessoal. Seus colegas de trabalho faziam piadas dizendo que ele só tinha um terno, que o usava de segunda a sexta, lavava no sábado para que no domingo estivesse pronto para ser usado na missa.

Outra constante na vida de Benigno eram as missas dominicais. Religiosamente ele chegava na igreja uma hora antes do início da missa para garantir que seu lugar preferido estivesse livre. Benigno sempre se sentava na primeira fila bem em frente a tribuna dos leitores.

A entrada dele na igreja era quase que ritualística, ao invés de uma genuflexão ele se prostrava de joelhos   diante do corredor central, fazia o sinal da cruz lentamente, levantava e seguia com passos firme e cabeça erguida até seu banco predileto, onde de joelhos fazia uma breve oração.

As colaboradoras e colaboradores da igreja já estavam acostumados com esse ritual e sabiam que não adiantava dizer palavra alguma a Benigno antes que ele fizesse sua oração, ele simplesmente não respondia.

Depois da oração Benigno pegava uma edição de bolso dos evangelhos e se punha a ler.

A atenção de Benigno só mudava de foco quando ela chegava. Com a altivez de uma rainha Eudóxia entrava na igreja e ia diretamente ao altar, onde após uma genuflexão verificava se tudo estava de acordo para a celebração da missa. Quinze minutos antes do início da missa ela ia até uma saleta na entrada da igreja onde tanto ela como o restante da equipe litúrgica e até o sacerdote se paramentavam entes da procissão de entrada.

Já beirando a idade de trinta anos Eudóxia era uma mulher emblemática. Embora fosse muito bonita jamais se teve a notícia que ela tivesse namorado um único homem. Além de bonita ela também se vestia com esmero, um taier cuja saia ia até quatro centímetros abaixo dos joelhos e invariavelmente em cores escuras, camisas de mangas longas abotoadas quase que até o pescoço e sapatos scarpin pretos com saltos grossos de nove centímetros. Não usava anéis nem brincos, a única joia que se permitia era uma fina corrente de prata com um crucifixo. A única coisa que destoava do visual impecável de Eudóxia era aquela enorme bolsa na cor laranja. Quando certa vez foi questionada sobre a cor da sua bolsa, meio que constrangida ela disse que em sessões de cromoterapia foi sugerido que ela usasse roupas naquela cor para se energizar, mas se recusava a usar roupas laranja, então optou pela bolsa.

Eudóxia participava das missas somente aos domingos, mas duas vezes durante a semana ia à igreja participar de reuniões com a equipe litúrgica e com o coral.

Com idade um pouco acima dos quarenta anos, Benigno sonhava em um dia ter um relacionamento um pouco mais íntimo com Eudóxia, mas faltava-lhe coragem para se aproximar e, assim, aquele amor platônico crescia a cada dia que passava.

Alguns místicos dizem que o universo costuma conspirar para que certos eventos ocorram, e em um jantar beneficente promovido pela igreja, Benigno e Eudóxia foram colocados na mesma mesa e assim começou o relacionamento há muito desejado por ele.

Daquele encontro casual nasceu uma amizade e a amizade evoluiu para um namoro.

Com exceção dos dias que ela tinha atividades na igreja, eles se viam diariamente, pois havia tanta afinidade entre eles que quem os conhecia afirmava que eram almas gêmeas.

Seis meses depois de se conhecerem, Benigno a pediu em casamento e ela com um sorriso tímido disse que aceitava desde que ele não implicasse com sua bolsa laranja.

O casamento foi simples, ela de vestido de noiva tradicional e ele de terno cinza e gravata cor de vinho.

Antes do casamento ela já tinha confessado a ele que não era mais virgem, mas que tinha pouca experiência sexual, e ele por sua vez admitiu que poucas vezes na vida tinha tido relações sexuais.

Assim por algum tempo, o casamento deles seguia sem sobressaltos. Ele trabalhando na repartição pública e ela no salão de beleza onde era cabeleireira e manicure. Faziam sexo apenas uma vez por semana, mas a relação era morna, quase fria. As relações deles estavam mais para bolero do que para show de rock, mais para aperitivo do que para uma refeição completa.

O tempo foi passando e junto com ele as relações sexuais foram diminuindo em frequência e intensidade. Ele chegava do trabalho, se banhava e após o jantar sentavam diante da TV para assistir uma novela. Terminada a novela iam dormir sem nem mesmo um beijinho como outrora. Sexo agora era uma ou duas vezes por mês.

Tentando melhorar o relacionamento, certo dia ele a convidou para irem assistir uma peça no teatro. No início ela não queria porque achava que aquilo era coisa de rico e o ingresso era muito caro, mas acabou concordando. Quando já estavam de saída, pela primeira vez Benigno implicou com sua bolsa laranja e resoluta Eudóxia disse que todo resto da sua vestimenta era negociável, menos a bolsa. —Ou eu vou com esta bolsa ou não vou disse irritada.

A situação estava ficando insustentável, quase não se falavam, e agora além da igreja e do salão ela também atendia em domicílio fazendo pés e unhas de algumas clientes.

Benigno estava à beira do desespero, tentou voltar a estudar e sob essa desculpa muitas vezes chegava mais tarde em casa. Eudóxia não falava nada, mas percebia que na maioria das vezes que ele chegava tarde em casa estava cheirando a álcool.

Se valendo da liberdade que tinha e da cumplicidade dos seus colegas de trabalho, em algumas tardes Benigno deixava o trabalho e ia a algum prostíbulo na periferia buscar a companhia e talvez alguma experiência que pudesse reavivar se relacionamento com Eudóxia.

  Eudóxia também havia mudado muito, pela manhã trabalhava no salão, a tarde quando não tinha atividades na igreja ia atender alguma cliente em domicílio. A noite já não mais assistia novelas, preferia ficar nas redes sociais conversando com as suas recentes amigas.

Com o aumento da renda proporcionada pelo trabalho em domicílio, Eudóxia já podia se dar ao luxo de usar algumas semijoias, e assim com exceção dos dias em que ia na missa era comum vê-la ostentando além da fina corrente, pulseiras e brincos.

Eudóxia dizia que amava seu marido. Quando ele contestou sobre as joias ela disse que só estava tentando ficar mais bonita para ele. Irritado, Benigno disse que se quisesse ficar mais bonita deveria em primeiro lugar se livrar daquela ridícula bolsa laranja. Depois disso ficaram uma semana sem trocar uma única palavra.

Depois de uma longa conversa com um amigo mais velho e, seguindo o conselho dele, Benigno tomou uma decisão, talvez a mais sábia desde que se casara, iria a um prostibulo distante cinquenta quilômetros de sua casa fazer uma “espécie de despedida de solteiro”, depois tentaria a todo custo melhorar seu relacionamento com Eudóxia, afinal ele a amava só que não soubera gerenciar sua vida de casado.

Aquele era o dia em que sua mulher atendia em domicílio, assim saiu do serviço logo depois de almoço e deu uma passadinha rápida em casa onde tomou um refrescante banho, se perfumou e rumou em direção ao prostíbulo.

O local era localizado em um bairro nobre da cidade e mais parecia uma clínica médica que um prostíbulo. A recepcionista disse que a prostituta que iria atendê-lo gostava de entradas teatrais, assim ele deveria entrar no quarto, se despir ficando apenas de cueca e aguardar a saída dela do vestíbulo.

Apreensivo Benigno subiu a escada e entrou no quarto e diante do que viu teve um infarto fulminante caindo ao lado da cama.

No corredor do prédio se ouviu um grito estridente, e quando a cafetina entrou no quarto se deparou com o corpo de Benigno estendido no chão, a prostituta usando apenas lingerie estava em pé e tremendo muito e sobre a cômoda uma enorme bolsa laranja.

Por S. Esteves

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A pandemia na terra do faz de conta - Crônica

outubro 15, 2020

Esta crônica foi selecionada para fazer parte da Coletânea "A Humanidade pós Pandemia" da Editora PerSe


Com a vista ofuscada pelas luzes e pela fumaça dos fogos de artifício queimados em comemoração ao Réveillon do ano de 2019, a humanidade não se deu conta da grande ameaça que a partir da Ásia Oriental silenciosamente se infiltrava em quase todos os países do mundo, a COVID-19.

Quais os reflexos dessa pandemia no futuro da humanidade?

Muito tem se falado sobre esse tema, comparações com a peste negra e gripe espanhola tem sido feitas, mas realmente existe algo em comum entre essas três pandemias? Acredito que não, entretanto, somente a história mostrará a verdade.

Identificado pela primeira vez em uma grande cidade da China no início do mês de dezembro de 2019 e tendo o primeiro caso confirmado no final daquele mesmo mês, o vírus rapidamente se espalhou pelo mundo, e em apenas vinte dias já estava presente na Europa.

Como desde a gripe espanhola ocorrida há mais de cem anos as grandes nações do mundo não tinham enfrentado outras pandemias, a COVID-19 pegou a todos completamente despreparados para enfrentar tal situação, e assim a única medida para minimizar a disseminação da doença foi o isolamento social. Como ratos de esgoto que se escondem para evitar ataques dos humanos, tivemos que nos trancafiar dentro de nossas casas deixando para trás nossas profissões, nosso lazer, nossas atividades sociais e até mesmo nossos cultos religiosos.

Infelizmente no Brasil, a prevenção para a disseminação da pandemia demorou demais a acontecer. Enquanto que ainda em fevereiro a Europa Oriental  já praticava o isolamento social e o mapeamento de novos casos, o Brasil irresponsavelmente promovia o maior carnaval da sua história, permitindo que durante dez dias cinquenta milhões de brasileiros e estrangeiros que para cá vieram trazendo consigo o vírus  da COVID se aglomerassem  nas vias públicas, clubes e salões.

A disseminação da doença ocorreu por todo o Brasil a uma velocidade muito maior que na maior parte do mundo. Enquanto que no país vizinho, o Uruguai, que não impôs o isolamento social por decreto, o número de casos da COVID era de menos de trezentos por milhão de habitantes, no Brasil chegou a quase oito mil. Enquanto que no Uruguai o número de mortes a cada um milhão de habitantes era oito, no Brasil esse número passou dos trezentos. Mas qual a causa dessa disparidade? A causa provavelmente foi o comportamento da população. No Uruguai bastou um alerta das autoridades de saúde para que o povo voluntariamente promovesse o isolamento social e cumprisse todas as regras de prevenção tais como o uso de máscaras, distanciamento social e higienização das mãos sempre que saíssem de casa. No Brasil, mesmo com decretos, multas e ameaças de todo tipo, mais da metade da população não colaborou, chegando ao ponto da prefeitura da maior cidade brasileira ser forçada a cercar parques municipais e as cidades litorâneas tiveram que interditar as praias e promover bloqueios para impedir a entrada de turistas.

A doença foi se espalhando pelo mundo e junto com ela mudanças de comportamento. Pessoas se decepcionaram com amigos, vizinhos e colegas de trabalho vendo que esses ao desrespeitarem as regras de isolamento demonstravam pouco se importarem com a saúde ou bem estar das pessoas que os rodeavam e junto com essa decepção veio a certeza de que talvez estivéssemos, até então,  confiando nas pessoas erradas. Como sempre aconteceu em toda história da humanidade o mundo foi se dividindo em dois lados antagônicos, os que colaboravam para a contenção da pandemia e os que sabotavam qualquer plano que se apresentasse.

Mais uma vez durante toda a pandemia a tríade medo, fé e esperança passou a ditar o comportamento da sociedade. Por todos os lados se ouvia: —Acredite, isso vai passar.  ou —Tenha fé, isso também vai passar.

Se por um lado o povo brasileiro é arredio em cumprir normas e regras, por outro talvez seja um dos povos mais solidários do mundo. Individualmente ou em grupos as pessoas começaram a arrecadar roupas e alimentos para serem doados aos mais necessitados que foram duramente afetados pela pandemia. Roupas, alimentos, materiais de limpeza e higiene foram distribuídos sem o necessário alerta: Essas doações um dia vão parar.

No rastro do festival de “bondades” criado pela pandemia, grandes empresas, sabe-se lá por quais interesses, fizeram vultosas contribuições em dinheiro e equipamentos para o controle da pandemia, assim como milhares de cestas básicas foram distribuídas aos mais necessitados, e mais uma vez ninguém lembrou de alertar que essas doações eram temporárias e um dia deixariam de ser feitas.

O fantasma do desemprego, junto com a supressão de renda principalmente das classes mais humildes, obrigou alguns governantes a criarem auxílios emergências, pois sabiam que a fome poderia desencadear revoltas e saques. Outros países resolveram investir na preservação dos empregos, auxiliando as empresas no custeio da folha de pagamento, mas em ambos os casos os cofres dos já combalidos orçamentos de alguns governos foram quase que completamente dilapidados, gerando dívidas monumentais que um dia terão que ser pagas à custa do sacrifício do povo.

A pandemia da COVID-19 não só afetou a saúde de muita gente e ceifou milhares de vidas, ela também ceifou sonhos e oportunidades, sequestrou um ano inteiro da vida de milhões de pessoas.

Boa parte da humanidade teve que se reinventar, desenvolvendo novas aptidões para conseguir sobreviver e, como sempre acontece, um novo termo foi inventado para descrever esse estado de coisas, o “novo normal”, que nada tem de novo e muito menos de normal. Assim o pequeno comerciante já falido teve que virar motoboy, o artista de circo virou padeiro, a cabeleireira virou cozinheira fornecendo comida pronta para suas antigas clientes.

O conceito de Home Office que desde os anos noventa do século passado vinha se arrastando, ganhou nova força.

O comércio eletrônico que na verdade é a modernização do antigo sistema de vendas por catálogos existente nos Estados Unidos da América do Norte desde o século XVIII com o lançamento do famoso Wish Book da Sears que continha mais de setecentas páginas de produtos que podiam ser adquiridos por correspondência e até por telégrafo, se modernizou com a chegada da Internet e deslanchou durante os meses de isolamento social.

Outro segmento que se modernizou com a chegada da internet foi o ensino à distância existente no Brasil há mais de oitenta anos funcionando através dos cursos por correspondência. Durante a pandemia as autoridades responsáveis pela educação e as escolas particulares tiveram que correr, improvisar e fazer uso de softwares de terceiros para criarem seus sistemas de aulas online, deixando na maioria dos casos a preparação dessas aulas sob a responsabilidade de professores que nem sempre estavam capacitados a lidar com essa tecnologia.

Com o Brasil mantendo há vários meses a média de mais de mil mortes diárias por COVID-19, as autoridades de várias regiões decidiram ouvir a população sobre a conveniência do retorno às aulas presenciais nas escolas públicas, e a pesquisa mostrou que cerca de oitenta por cento dos pais não achava seguro mandar seus filhos para a escola, assim sendo na maioria dessas cidades o retorno às aula ficou adiado para o ano letivo de 2021.

Após oito meses desde o seu início, a pandemia pelo mundo vive de altos e baixos. A Europa teme uma segunda onda após o aumento do número de casos, e alguns países já cogitam fechar novamente as fronteiras. Nos Estados Unidos da América do Norte, após acabarem precipitadamente com o confinamento o número de novos casos e de mortes disparou obrigando o governo voltar atrás.

Mas e o Brasil? Como está se comportando após cinco meses de confinamento?

Movidos pela diminuição do número de casos e óbitos, e também na taxa de ocupação das UTIs dos hospitais, algumas regiões começaram a flexibilizar a quarentena permitindo algumas atividades comerciais não essenciais, e o que se viu em algumas cidades foi o total desrespeito aos protocolos instituídos pelas autoridades. No dia que os Shopping Centers reabriram, grandes filas e aglomerações se formaram nas portas desses estabelecimentos e muita gente só colocava a máscara no momento que iam entrar. A impressão que se tem é que vivemos em um mundo do “faz de conta”. Muitos estabelecimentos comerciais e boa parte do  povo fazem de conta que que estão cumprindo todos os protocolos, e muitas autoridades fazendo de conta que estão fiscalizando.

Na fase de flexibilização muitas cidades litorâneas permitiram algumas atividades nas praias desde que se cumprissem todos os protocolos para evitar a contaminação, porém logo no primeiro dia de sol as praias foram tomadas por milhares de turistas montando seus guarda sóis e cadeiras, o que continuava proibido, promovendo aglomerações e grande parte deles nem máscara estava usando.

Agora vem a pergunta. O que esperar da humanidade depois que essa pandemia estiver pelo menos sob controle e houverem vacinas e medicamentos eficazes? Muitos apostam em uma nova ordem mundial, outros em uma espécie de renascimento como ocorreu na Europa no século XIV após o fim da peste negra, mas até mesmo os mais otimistas sabem que isso não passa de uma utopia.

Como esperar uma nova ordem mundial se as grandes potências continuam se digladiando pela supremacia comercial? Como esperar uma nova ordem mundial quando países desrespeitam todos os protocolos para lançar rapidamente uma vacina para a COVID-19 não por preocupação com a saúde pública e sim para aumentar seu prestígio no mundo?

Acreditar em uma espécie de renascimento como ocorreu na Europa após a pandemia da peste negra é no mínimo desconhecer a história. A Peste negra foi apenas um dos fatores dentro do contexto das mudanças que culminaram com o renascimento, movimento artístico, filosófico e cultural que permitiu a mudança de mentalidades na sociedade europeia. Entretanto, os fatores mais importantes foram as cruzadas que provocaram o renascimento comercial na Europa, e a revolução burguesa que enterrou de vez o feudalismo.

Outros ainda apostam que a pandemia da COVID-19 nos deixe algum legado como deixou a pandemia da gripe espanhola, mas afinal que legado foi esse? As principais armas para conter a gripe espanhola foram: o isolamento social, o uso de máscaras e maiores cuidados com a higiene. Lamentavelmente grande parte da população atual não acredita nesses cuidados para conter a COVID-19 e assim essa herança está sendo jogada no lixo.

Existe uma diferença gritante entre ter um conhecimento e usar esse conhecimento com sabedoria. De nada adianta eu saber que a principal forma de disseminação da doença são as aglomerações, se no primeiro dia da reabertura dos shoppings eu me colocar no meio de um grande grupo de pessoas, como se uma visita ao shopping fosse vital para a minha vida. De nada adianta eu saber que o uso de uma simples máscara pode salvar a minha vida se eu por teimosia me recusar a usá-la. O que esperar no futuro, se essa multidão de rebeldes sem causa, que sem mesmo saber o porquê, sabotam todas as iniciativas que possam ajudar a controlar a pandemia?

As maiores transformações que a humanidade verá em um futuro próximo provavelmente não serão algum tipo de legado da pandemia, e sim produto da revolução tecnológica em andamento com o uso da inteligência artificial. Teremos que nos habituar a conviver com aparelhos robotizados e inteligentes em nossas casas, nas ruas, nas escolas e até nos consultórios médicos. Se os cinemas de rua foram esmagados pelas salas nos shoppings, essas mesmas salas serão derrotadas pelas tecnologias que nos permitem assistir nossos filmes prediletos pelos sistemas de stream no conforto de nossas casas, em telas gigantescas de alta definição e com um sistema de som capaz de fazer inveja aos melhores cinemas do mundo. Dirigir também será coisa do passado; a supermáquina, o super automóvel da famosa série dos anos oitenta do século XX talvez esteja bem mais próxima do que imaginamos.

Aparentemente não haverá um padrão para o mundo pós pandemia, tudo vai depender da cultura e de como a população enfrentou a ameaça. Se a população de países como o Brasil e os Estados Unidos da América do Norte tivessem se comportado como o povo do Uruguai, do Camboja, do Japão e da Tailândia, certamente a pandemia já estaria sob controle e a retomada das atividades econômicas e culturais já teria ocorrido há mais tempo. Só para se ter uma ideia, no Japão que tem cento e trinta milhões de habitantes o total de mortes pela COVID-19 é menor do que as mortes contabilizadas em um único dia no Brasil. Detalhe: O Japão não fechou fronteiras nem impôs nenhum tipo de bloqueio, o uso de máscaras e o distanciamento social foi um ato voluntário do seu povo.

É preocupante pensar no futuro de algumas nações após a pandemia.

O que esperar de um povo que não achou seguro que seus filhos voltassem às aulas mesmo as autoridades afirmando que todas as medidas de segurança para evitar a contaminação das crianças estavam sendo tomadas, e alguns dias depois não viu problema algum em colocar essas mesmas crianças no meio de uma multidão de pessoas sem máscara apenas para desfrutarem de um dia de sol na praia?

Como esperar um futuro melhor se muitos dos jovens que estarão à frente das empresas e muitas vezes das nações não respeitaram nada e nem ninguém durante a pandemia, andando pelas ruas sem usar máscaras, promovendo aglomerações e frequentando festas e baladas clandestinas?

Como ter fé no futuro de um povo se as crianças que serão os adultos desse futuro se acostumaram a ver seus pais desrespeitando leis, as normas de trânsito, e sobremaneira os protocolos de prevenção da COVID-19?

Muitas pessoas acreditam que o chamado “novo normal” vá se perpetuar o que é pouco provável. Depois da pandemia o povo voltará a comprar seus pães na padaria, e o artista que fazia pão para vender voltará a atuar na sua profissão, a cabeleireira que vendia refeições reabrirá seu salão e a sua clientela voltará a frequentar os restaurantes. Depois da pandemia as pessoas que já praticavam a caridade e o voluntariado continuarão se envolvendo nessas atividades, enquanto que a maioria dos “novos prosélitos” abandonarão tudo para voltar à sua rotina.

O que talvez tenha se fortalecido durante a pandemia e venha a se perpetuar seja o trabalho em Home Office, e mesmo assim esse tipo de trabalho tende a excluir muita gente que poderia ver nele um futuro melhor para si e sua família, porque de nada adianta ser um profissional competente se não tiver um computador a altura do trabalho a ser realizado e uma conexão com a internet rápida e confiável.

Outro segmento que por absoluta necessidade cresceu durante a pandemia e tende a voltar aos patamares anteriores é o ensino a distância. Essa modalidade de ensino conta com três inimigos que a impedirão de se perpetuar. O primeiro inimigo é o total despreparo dos sistemas de ensino e da maioria dos professores para lidarem com a tecnologia necessária para o seu funcionamento. O segundo é que grande parte dos alunos não dispõe de equipamentos adequados para acompanhar as aulas, e muitos deles nem ao menos tem acesso à internet. E o terceiro será difícil quebrar o paradigma de que os alunos só aprendem se estiverem dentro de uma sala de aula.

Finalmente, terminada a pandemia o mundo terá que conviver por anos, talvez décadas com os danos causados por ela. Vidas foram ceifadas, muitas delas de pessoas que muito contribuíram para o bem estar e crescimento da humanidade. Muitas pessoas e famílias tiveram sua renda e seu orçamento tão abalados que talvez nunca mais recuperem o padrão de vida que tinham antes da pandemia. Estudantes que perderam o ano letivo terão que se esforçar muito para se recuperarem. Aquele comerciante falido que foi forçado a trabalhar como motoboy talvez jamais consiga se recuperar.

Os países que enfrentaram a pandemia de forma inteligente provavelmente retomem a atividade econômica rapidamente, ao passo de outros, como o Brasil que permitiram que a pandemia se alastrasse sem controle poderão ter um pós pandemia traumático, pois com os cofres governamentais dilapidados e dívidas quase que impagáveis os governantes serão obrigados a cortar gastos até nas coisas mais básicas como saúde, educação e segurança. Sem dinheiro para gastar e também para investimentos que promovam o crescimento, os governantes não terão outra saída a não ser aumentar a arrecadação via impostos, penalizando sobretudo a população menos favorecida.

O que se espera é que essa pandemia tenha trazido o alerta de que a estrutura social e a ordem mundial são bem mais frágeis do que imaginamos.

Talvez a coisa mais marcante depois da pandemia possa ser reduzida em uma única frase:

Ufa! Até que enfim acabou.

Por S. Esteves


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O Último desafio - Conto

outubro 15, 2020

      Sobre este conto

     Este conto foi escrito a partir de uma proposta lançada em um evento, onde os participantes deveriam escrever um conto sob o ponto de vista do personagem feminino do conto "Livro dos Recordes " do escritor Renato Lemos.

Trata-se de um conto forte sobre um assunto controverso que pode causar algum tipo de constrangimento em algumas pessoas. 


O Último desafio


Normalmente eu não como tão depressa, mas sempre que estou com ele parece que estou tentando bater mais um recorde. Quanto tempo levou para eu devorar aquele Big Mac junto com uma Coca Cola de 300 ml? Talvez uns três minutos, mas isso não importa mais. Recordes agora fazem parte de um passado que jamais voltará.

Do outro lado da mesa ele saboreia o seu milk-shake. É sempre a mesma coisa, eu peço um Big Mac e uma Coca Cola e ele um milk-shake.

No passado eu já teria anotado três recordes:  A velocidade com que caminhamos desde a porta da faculdade até a lanchonete. A velocidade com que devorei meu Big Mac e a menor quantidade de palavras ditas em meia hora.

É sempre assim; eu digo: —Oi, tudo bem? E ele responde com um aceno de cabeça.

Houve época em que expressávamos nosso amor e companheirismo criando todo tipo de desafios bobos. Quem ficaria mais tempo sem sorrir vendo o outro fazer todo tipo de palhaçada, quem comeria sua poção de fritas mais rápido, e tantas outras coisas estúpidas que inventávamos na hora. Quase sempre quem tomava a iniciativa era eu, e ele sempre embarcava nas minhas loucuras sem pestanejar. Na maioria das vezes quem ganhava o desafio era eu, em algumas eu me sabotei para que ele ganhasse. Era tão gratificante o brilho nos seus olhos e o grito de “Hurra!” sempre que ganhava, mas isso também faz parte de um passado que eu deveria, mas não quero esquecer.

Olhando sua expressão triste do outro lado da mesa sempre me pergunto: Se tudo isso faz parte do passado, por que quando estou com ele continuo andando rápido para quebrar meu recorde anterior, ou porque continuo comendo tão rápido abdicando do prazer de saborear meu lanche? Acredito que bem no fundo eu queira preservar tudo de bom que um dia existiu entre nós.

O mundo não perdoa quando cometemos erros e nem pede perdão quando destrói vidas, sonhos e esperanças. Como diz uma das músicas do Padre Zezinho, vivemos em um mundo de mil verdades e milhões de mentirinhas, e as mesmas pessoas que destroem nossas vidas quase sempre tem segredos inconfessáveis.

Para quebrar o silêncio e passar o tempo comecei a contar a ele um filme que assisti na semana passada, mas ao perceber que aquela história se assemelhava ao que aconteceu conosco disse que tinha esquecido do final.

Mais de uma vez ensaiei tocar naquele assunto tão delicado, mas de repente me dá um nó na garganta e não consigo dizer mais nada.

Queria que ele soubesse de muitas coisas que guardo no meu peito há mais de três anos, mas nunca tive coragem de lhe dizer.

Nossos desafios eram sempre inocentes e aquele último deveria ter sido assim, mas acabou de uma forma tão inusitada que abalou a vida de algumas pessoas.

Nós estávamos na beira da piscina do condomínio quando eu lancei o desafio de quem conseguiria ficar mais tempo sob as águas. Na verdade, eu não estava sendo totalmente honesta, já que secretamente vinha treinando prender a respiração por alguns minutos.

Eu pulei primeiro, aguardei meu corpo se habituar com a temperatura da água, fiz algumas inspirações aprofundas e a seguir mergulhei em direção ao fundo azul da piscina. Segurei a respiração o quanto pude e ao sair, o cronômetro marcava um minuto e trinta segundos.

Assim que recuperei meu fôlego e segurei o cronômetro ele pulou. Eu tinha certeza que ele não chegaria nem a um minuto, mas o tempo foi passando e ele não subia. Fiquei preocupada, mas sabia que não era louco ao ponto de pôr sua vida em perigo por causa de mais um desafio bobo. Quando o cronômetro marcou um minuto e meio ele emergiu, mas não me parecia muito bem, não falava e nem respirava. Pulei na água e levei-o até a escada. Meio que atabalhoadamente ele conseguiu subir até a borda, mas tombou logo a seguir dando socos no peito como se não conseguisse respirar. Não tive dúvidas, abri as pernas, sentei sobre sua barriga e iniciei uma respiração boca a boca. Rapidamente ele tossiu, expeliu uma grande quantidade de água, mas parecia que ainda estava tendo dificuldades em respirar, então colei novamente meus lábios no dele reiniciando a respiração boca a boca.

Não sei dizer exatamente quando a respiração boca a boca se transformou em um beijo, só me dei conta disso quando senti sua língua invadindo minha boca.

Eu poderia ter me afastado, poderia ter saído de cima dele, poderia até ter lhe dado um tapa na cara, mas não foi nada disso que fiz, aceitei aquele beijo e o retribui da melhor forma possível já que com pouco mais de quinze anos de idade tinha beijado poucos rapazes.

Quando nossos lábios se separaram olhei para ele meio que enternecida e horrorizada. Como era possível que meu próprio pai me tivesse beijado daquele jeito e eu ter correspondido sem reservas?

Não houve tempo para dizermos uma palavra a respeito, logo os funcionários do condomínio nos cercaram e minha mãe foi chamada, a partir daí não sei mais o que aconteceu.

Em um primeiro momento ele foi proibido de entrar em casa e se aproximar a menos de duzentos metros de mim, depois houve um julgamento e ele foi condenado a me pagar pensão alimentícia e só me veria uma vez a cada mês e mesmo assim sob supervisão de um conselheiro tutelar.

Nós erramos e toda a culpa recaiu sobre ele. É irônico lembrar que dois meses antes, minha mãe que tem mania de grandeza ter patrocinado para mim um baile de debutante. Após aquela encenação toda, meu namorado com idade de dezessete anos me beijou com muito mais volúpia do que o beijo que meu pai me deu, e nem por isso foi recriminado e condenado a coisa alguma.

Às vezes fico me perguntando: E se eu não tivesse proposto aquele desafio? E se ele tivesse saído da piscina antes de se afogar? E se ao expelir aquela grande quantidade de água tivesse conseguido respirar normalmente evitando assim que eu retomasse a respiração boca a boca? Será que ele, minha mãe e eu estaríamos vivendo tão felizes quanto antes?

Meu pai era realmente feliz nos quase vinte anos que viveu com a minha mãe? Aquele beijo não foi o ato final de um relacionamento baseado em mentiras e aparências?

Nesses últimos três anos, sob as mais variadas desculpas deixei de comparecer à vários encontros, algumas vezes por iniciativa própria, outras por uma imposição velada da minha mãe.

Minha vida nunca mais foi a mesma, virei uma espécie de órfã de pais vivos, pois além de perder meu pai, minha mãe me trata como se eu fosse um peso na sua vida. Chego a suspeitar que ela só denunciou e processou meu pai por ciúmes, por medo de perder seu homem para mim.

Olho novamente para meu pai do outro lado da mesa, e mais uma vez um grande bolo se forma no meu estômago e um nó na minha garganta.

Que direito tinha aquele povo de julgá-lo por um beijo que deve ter durado um tempo menor do que ele ficou submerso?

Muitas vezes me pergunto onde estavam os funcionários do condomínio que viram o beijo, mas não moveram uma palha para salvá-lo quando estava se afogando.

Parte-me o coração, ele está tão triste, esses encontros nesse formato tem sido um grande equívoco, isso tem que acabar e tem que acabar agora.

Atirei na lixeira o lixo resultante do meu lanche. Quando percebi que meu pai fez o mesmo venci todas as minhas barreiras e falei:

—Sabe aquela foto nossa que você tanto gostava? Ela continua sobre a minha cômoda, aliás coloquei-a em um porta-retratos novinho em folha.

—Você ainda guarda aquela foto?

—Não só a foto, mas também a camisa do Ramones, o copo do Circo de Soleil , o ingresso do show que assistimos juntos, o livro de contos, o caderno de poesias e até a fita de Nossa Senhora Aparecida. Tudo está bem guardado.

Percebi que seus olhos marejaram quando perguntou quase que sussurrando:

—Por que guardou essas coisas?

—Guardei tudo porque essas coisas são o único elo que tenho com aquela pessoa que eu era e um dia quero voltar a ser; o único elo com aquela pessoa que você era e que um dia espero ver se revelar novamente.

Dizendo isso, resolutamente levanto e quando ele também levantou abraço-o afundando meu rosto no seu ombro.

Ouvi os passos do Conselheiro tutelar, mas ele parou ao nosso lado e nada disse, como se sentisse na pele o drama que se passava bem na sua frente.

Queria dizer muita coisa ainda, queria pedir perdão por não ter resistido àquele beijo, queria gritar para o mundo a inocência daquele homem, mas a única coisa que consigo fazer é chorar e soluçar por um tempo maior do que durou aquele fatídico beijo. 

 Por S. Esteves

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